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Em filme, poeta flana pelas ruas de metrópole

O cinema, enquanto instrumento para retratar o real, é um manifesto de resistência. É a narrativa do tempo sobrevivente ao destempero do ódio, mas também ao prazer dos amores e desamores. Um documentário é produzido para ficar a disposição do espectador por anos, décadas e séculos, como uma família que rememora os momentos mais marcantes ao pegar um álbum de fotografia na estante da sala.

No caso de “Amador”, produção mineira e goiana dirigida por Cris Ventura e disponível na Mostra Olhos Livres do Festival de Tiradentes, a beleza do grito do poeta é o que torna o filme tão singular, e ao mesmo tempo um manifesto a favor de seres livres e libertários que não aceitam jogar no tabuleiro das convenções sociais com peças impostas pelas regras da família tradicional brasileira e sua balela repressora.

Em 80 minutos, Cris retrata a vida do finado artista, poeta, performer e pintor Jonatas Vidigal Amador, uma das mentes mais inventivas que agitaram o underground de Belo Horizonte nos anos 2000 e que saiu de cena em novembro de 2019. Aqui a sensibilidade é enaltecida, porém não dissociada, da aventura da existência.

Há, de fato, uma certa semelhança com o filme que abriu a Mostra de Tiradentes, “Ostinato”, de Paula Gaitán. Tanto um quanto o outro se preocupam em mergulhar no mundo interior de duas mentes inquietas e ricas. Se Gaitán perfilou o ícone da vanguarda paulistana musical Arrigo Barnabé, Cris enfoca a cultura nietzschiana de Vidigal e seus fragmentos verbais líricos que vão de Ana Cristina César a Paulo Leminski.

O filme dedica boa parte de sua duração para mostrar a intensidade do presente e como isso reflete na qualidade de presença, que é própria de quem flana pelas ruas. Nesse sentido, a diretora parece evocar a máxima do “cavalheiro caminhante” da qual tratava o poeta Charles Baudelaire no século 19 e sobre a qual o filósofo Walter Benjamin chegara a dizer que era uma espécie de símbolo da modernidade que passeia pela vida urbana.

A bem da verdade é que, ainda usando Benjamin em “A Infância Berlinense” como referência, é possível encontrar em “Amador” um poeta atento a todos os detalhes da cidade: os recantos das cores, o barulho produzido pelo som da urbanidade e a miséria que encontra no capitalismo um aliado para se perpetuar pelas esquinas do desespero e pelas ruas da amargura todo tipo de desgraça a ser imaginada: a loucura, a fome, o abandono, o desassossego.

Ao menos a mim, a figura maravilhosamente desprendida das picuinhas típicas das convenções tão bem vivida por Vidigal despertou uma paixão que me levou a indagar: por que a máquina de triturar sonhos financiados pelo capital massacra ideias de gente como o poeta belohorizontino? Por que porra (desculpa-me se o meu francês não está em dia) aqueles que queimam como fogos de artifício pela noite são esquecidos por um sistema assassino e opressor?

Não me venham vocês com suas teorias caducas a despeito de um padrão de vida burguês que somos obrigados a seguir. Sim, palmas (clap, clap, clap!) para Vidigal que simplesmente mandou às favas os idiotas e sua moral cristã. “Amador” é uma ode ao amor e à beleza.

Aqueles preocupados em enquadrar o filme numa estética pré-definida talvez optem por tentar descrevê-lo como pouco marginal, o que eu rebato como um equívoco: estamos assistindo um interessante exercício de cinema documental proposto por Cris Ventura, no qual ela dá voz a uma pessoa que, vendo sua vida se tornar mais difícil, passou a alimentar uma empatia por aqueles que enfrentam obstáculos ainda maiores.

Documentarista segura e delicada, Cris constrói Vidigal com detalhares que podem passar despercebido num primeiro momento, mas que são cruciais para a condução do filme, como – por exemplo – quando o poeta corta seu cabelo inspirado em Elis Regina. É uma decisão tomada com o intuito de aproximá-lo de uma representação andrógina.

“Amador”, além de ser um belo filme, também da potencializa a arte enquanto instrumento para questionar o erotismo heteronormativo, um dos grandes canalizadores de ideias autoritárias.

Pena, ô que pena, a morte de Vidigal fez com que Cris Ventura interrompesse as gravações. Sim, trata-se de um ato de amor e respeito ao seu perfilado e amigo. Mas que o mundo deveria conhecer seus pensamentos, ah deveria. “Amador”, sem mais delongas, é um filme emocionante.

Filme assistido no Festival de Cinema de Tiradentes

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