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Em 'Mães Paralelas', Pedro Almodóvar olha para o passado do fascismo franquista

Pedro Almodóvar exuma o passado do fascismo franquista na Espanha. Nascido em 1946, o celebrado diretor de “Dor e Glória” e “Mulher À Beira de um Ataque de Nervos” cresceu num país dominado por um regime que unia o catolicismo, com requintes fundamentalistas, a um reacionarismo, à moda fardada, cujo legado foi isolar os espanhóis do mundo por 39 anos. Depois da Segunda Guerra Mundial, o “generalíssimo” e seus comparsas perseguiram democratas, anarquistas, socialistas e comunistas, além de judeus, ateus, homossexuais, feministas e líderes sindicais.

Um ateu que se descobriu gay ao assistir “O Clamor do Sexo”, lançado por Elia Kazan em 1961, Almodóvar está entre aqueles que o franquismo julgou indesejáveis. Mas, enquanto Franco governou – suplício que durou até 1975 –, o jovem cinéfilo queria escrever um roteiro, fazer filmes, lasque-se a ditadura. Com uma câmara Super 8 à mão, na década de 70, sob os resquícios de um regime que fundia bíblia, farda, moral e bons costumes, começa a se utilizar da imaginação para afrontar a ditadura: faz o curta-metragem “La Caída de Somoda”. Depois, para ser aclamado, os clássicos.

Em “Mães Paralelas”, filme que chega aos cinemas hoje antes de ficar disponível na Netflix no próximo dia 18, o cineasta continua preterindo o vermelho, não abre mão da atriz Penélope Cruz, nem em retratar mulheres fortes, porém decide fazer um longa político. Cruz, queridinha do cineasta, vive uma fotógrafa chamada Janis, órfã cedo da mãe hippie, que está na meia idade e aventurou-se com um antropólogo forense de quem estava fazendo retratos. Os dois bebem vinho, transam e ela fica grávida.

“Quando eu olho para trás, não lembro como foi o sofrimento porque foi para ela, para Janis, ou para todas as mulheres que poderiam estar na mesma situação, perdendo o que amam mais. Para mim, ela está viva, é uma criatura real que ele criou”, afirma a atriz, numa entrevista New York Times. “Mães Paralelas”, no entanto, não se passa durante a ditadura franquista, e sim em meio à procura de Janis saber mais sobre o passado de seus ancestrais, enterrado numa vala, a mesma que esconde sua filha.

Janis é vítima desse terror. Salva pela avó, que a criou porque não tinha ninguém, ela quer abrir as valas, não é só uma questão de identificar, é para mostrar o que de fato existiu, revelando a história da ditadura, seus horrores, suas dores provocadas em famílias destroçadas, ao mesmo tempo no qual a personagem precisa conviver com um dilema moral de que sua vida se pauta pela mentira. O que Franco fez, nas palavras de Almodóvar, foi condenar pessoas como a personagem de Cruz à inexistência.

Para o cineasta, num bate-papo à Associated Press publicado no início de janeiro neste DM, “Mães Paralelas” só foi possível por causa da maturidade em termos cinematográficos e também em termos pessoais. “Faz muito tempo que quero fazer um filme sobre túmulos, coisa que, curiosamente, o cinema espanhol nunca fez. É algo verdadeiramente triste”, disse o diretor, na ocasião, acrescentando que pesquisadores da ONU ficaram chocados ao saber que as pessoas que lhes contrataram para auxiliá-los sobre a abertura das valas eram da geração dos bisnetos das vítimas.

Tudo começa no inverno de 2016, assim que Janis é contratada para realizar uma série de fotografias de um arqueólogo forense chamado Arturo, personagem de Israel Elejalde. Depois de já ter feito as imagens, ela o chama no canto, explica-lhe que quer escavar as valas comuns, em sua cidade natal, onde o bisavô e mais nove moradores foram assassinados pelas tropas franquistas. Ele quer ajudar, mas a fundação que assumiria tal iniciativa teve as portas abaixadas pelo governo espanhol, de direita.

Como já foi falado, os dois têm um caso: ela gravida. Na maternidade, prestes a dar à luz, não há sinal do pai. Atenção, convém dar spoiler: casado, possui outra família. Ela divide o quarto com uma mulher mais nova. Ambas são solteiras. Nenhuma delas planejou ser mãe. A outra, com 17 anos, engravidou por acidente e sente medo pelo que possa lhe acontecer. Nessas distintas experiências, as duas estabelecem um laço unido pela maternidade. Por meio delas, Almodóvar estabelece um conflito geracional, mostrando uma Espanha progressista e também conservadora.

Emocionante e fiel à luta pela memória da ditadura, “Mães Paralelas” consegue estruturar uma narrativa que combina pessoalidade com uma autenticidade importante em matéria histórica. Janis e Ana são de gerações distintas, uma – mais nova – não conhece tanto o passado franquista de seu país, já a outra quer recuperar a memória: o bisavô de Janis, por exemplo, deixou imagens de seus vizinhos, mortos junto com ele. O pai da jovem, por outro lado, é hostil. Politicamente? Define-se como apolítico.

Almodóvar já declarou em entrevistas que, em Espanha, quando alguém assim se diz, pode ter certeza, não h´á erro: “é de direita.” Então Janis a convida para morar consigo, ensinando-a cozinhar e cuidar da casa, isto é, viver de forma independente, o que ela jamais conseguiria na casa dos pais, por exemplo. É a chance de desenvolver uma consciência lhe negada.

É certo que Almodóvar, diretor de obras-primas como “Tudo Sobre Minha Mãe”, “Volver” e “Abraços Perdidos”, domina com excelência o melodrama, concedendo aos problemas das pessoas comuns a dimensão da tragédia. Sim, isso é político, pois a existência humana é inseparável dos problemas cotidianos. Em “Mães Paralelas”, mais uma vez, o cineasta consegue realizar essas conexões, agora abertamente políticas, para jogar luz sobre um passado que não passa: é tão dramático que a trama abarca 24 anos na vida de uma bem-sucedida fotógrafa comercial de Madrid.

Dificilmente, você vai assistir a “Mães Paralelas” e ficar insensível aos ecos que o filme faz em relação à política brasileira, em cuja desmemória encontra força iniciativas para colocar em cheque nosso passado autoritário. Tanto lá quanto cá, precisamos destacar a luta pelo direito ao passado encabeçada pelas mulheres aqui, na Argentina ou até mesmo na Espanha, país que se assemelha a nós nesse quesito. Assistam o último Almodóvar. Certeza que não vão se arrepender.

Mães Paralelas

Diretor: Pedro Almodóvar

Gênero: Melodrama

Disponível nos cinemas; dia 18, na Netflix

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