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DM se tornou referência na cultura ao abrigar nomes como Drummond, José J. Veiga e Bernardo Élis

Carlos Drummond de Andrade diz que o prato recomendado nos botequins e restaurantes será sempre o prato dia, José J. Veiga reconhece que temos mais poetas do que pessoas aptas a julgar poesia, Bernardo Élis narra a indagação de um bêbado entristecido pela morte da folia carnavalesca. Assim eram habitadas as páginas deste DMRevista em fevereiro de 1983, cuja edição-geral ficava sob responsabilidade do jornalista Wasghinton Novaes. Não por acaso, a Academia Brasileira de Letras (ABL) elegeu o Diário da Manhã nesta época como terceiro melhor jornal do país.

Além de Drummond, Veiga e Élis, craques em matéria de pinçar delicadezas do cotidiano, também era possível se deparar aqui com Millôr Fernandes fazendo o leitor soluçar de rir ou Fernando Sabino encontrando na vida o lirismo que lhe fez um dos maiores cronistas da imprensa brasileira. Durante esse período, a redação, capitaneada por Novaes, inventou uma maneira de fazer um jornalismo democrático, fundamentado no espírito público, com rigor factual e em diálogo com a sociedade. “Era um jornal que dava tesão de fazer”, dizia o premiado jornalista, falecido em 2020.

Marcel Proust entrevista Carlos Drummond de Andrade - Revista Bula
Drummond assinou coluna no DMRevista durante os anos 1980 - Foto: Governo de Minas Gerais/ Reprodução

Nessa época, a edição do DMRevista ficava a cargo do jornalista, poeta, artista gráfico e desenhista Reynaldo Jardim. Considerado o maior nome da imprensa cultural brasileira, Jardim colecionou inovações por onde passou. No Jornal do Brasil, então o melhor periódico do país, no final dos anos 1950 e início dos 1960, criou o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e o jornal O Sol, aquele mesmo que o cantor Caetano Veloso referencia em “Alegria, Alegria”: “o jornal nas bancas/ quem lê tanta notícia?” Os editores? Zuenir Ventura, Otto Maria Carpeaux e Carlos Heitor Cony.

Não poderia dar certo, difícil vingar, era um jornal produzido por jornalistas: durou pouco mais de seis meses! Como se fosse uma bomba criativa prestes a explodir, Jardim passou ainda pela cozinha (jargão para definir onde trabalham os jornalistas responsáveis pelo fechamento) do Correio da Manhã, sufocado financeiramente pela ditadura militar, Última Hora, veículo que marcou época na imprensa brasileira, e Senhor, revista em cujas páginas escreveram nomes como Paulo Francis e Ivan Lessa e onde Clarice Lispector e Guimarães Rosa publicaram seus primeiros contos.

Se no âmbito nacional textos ácidos entraram em cena para criticar os desmandos fardados por meio de Pasquim, o Cinco de Março – pai do DM – seguia em trilhos parecidos, por vezes até mais ousados, ao apoiar os estudantes perseguidos pela ditadura, o que representava uma ousadia de proporções inimagináveis. Batista Custódio, criador do semanário junto com a esposa Consuelo Nasser, chegou a ser preso por crime de opinião, nos anos 1970, período mais barra-pesada do regime.

Reynaldo Jardim
Principal nome da imprensa cultural brasileira, Reynaldo Jardim comandou Revista e promoveu reforma gráfica e editorial - Foto: TV EBC/ Reprodução

A publicação investia também em charges com sacadas espertas. Chico Fróes, que chegou a colaborar com Pasquim e por anos manteve a lendária coluna Para-Choque neste caderno, começou a publicar suas primeiras charges no Cinco de Março. “Batista sempre gostou de charge”, me disse o cartunista, certa vez, quando estávamos na redação do DM – eu, ainda um foca; ele, já com experiência na arte de rir do cotidiano. Jorge Braga também deu os primeiros passos no semanário e chegou, nas páginas do DMRevista, a ilustrar as crônicas de Carlos Drummond de Andrade.

Do outro lado, já um jornalista cultural responsável por criar grandes acontecimentos culturais na imprensa brasileira, como o Suplemento Dominical, em cujas páginas povoavam a poesia concreta, o movimento neoconcreto e o cinema novo, está Reynaldo Jardim. Expansionista que transformava energia sonora em energia gráfica, como ele mesmo gostava de definir-se, Jardim esteve à frente da revolução gráfica pela qual passou o Revista nos anos 80, priorizando um estilo de diagramação com fotos abertas, com umas se sobrepondo às outras, como uma obra de arte.

No Revista, como as gerações de jornalistas se habituaram a chamar o caderno, o grande legado deixado por Jardim é a necessidade jornalística de priorizar manifestações culturais e movimentos artísticos que não possuem tanto destaque na imprensa local, pensar além do óbvio e entender a amplitude da cobertura cultural, suas manifestações antropológicas, sociológicas e artísticas, porém permanecendo jovem. Esse era, inclusive, um dos mandamentos de Reynaldo Jardim: manter-se adolescente e cercado de jovens para confabular experiências.

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Cronista lírico e de olhar sensível, Fernando Sabino também ocupou as páginas do jornal - Foto: Arquivo Nacional/ Correio da Manhã

Por onde passou, dizem os amigos, Reynaldo Jardim deixou sua marca e dele não é possível lembrar de outra maneira que não seja uma foto aberta em oito colunas (como era no formato standard) e manchete. Foi o que aconteceu no Diário da Manhã, onde escreveu, editou, modernizou os critérios de edição, revolucionou os parâmetros de diagramação e deixou uma imensa saudade. Bem afortunados foram aqueles que conviveram com o jornalista, poeta, artista gráfico e agitador cultural.

Para Wasghinton Novaes, falecido no ano retrasado, era difícil chegar à qualidade do jornal produzido pela primeira geração do DM, que está gravada na história da imprensa. “O Jânio de Freitas, por exemplo, que estava longe há muito tempo, voltou para a comunicação para fazer uma coluna no jornal sobre o Rio de Janeiro. O Newton Carlos fazia uma coluna internacional. O Cláudio Abramo escrevia às vezes”, afirma Novaes, em depoimento para “Vozes da Democracia” ou pode ser comprovado nos exemplares arquivados no Instituto Histórico de Geográfico de Goiás.

Nascido há 42 anos, o DMRevista chega à era do jornalismo digital antenado às novidades e, num tempo em que blogueiros se arriscam a palpitar sobre livros, filmes, discos e comportamento, um caderno pensado, preparado, escrito e produzido por profissionais novos ou experimentados, em busca do underground e do diferente, sem esquecer, contudo, dos aspectos que marcam a nossa goianidade, ainda tem seu valor: o jornalismo cultural é, mais do que nunca, essencial para a democracia.

Em tempo: Bernardo Élis, imortal da ABL e presença frequente nas páginas do DMRevista, afirma que, estabelecido o contraponto com o poeta Manuel Bandeira, é preciso ir em frente, sempre com o pé atrás, “que é para não apanhar constipação; porque quem come em gamela não precisa de tigela”. Mas precisa, por ora, da força da literatura, da música, das artes visuais, do cinema, da transgressão no comportamento para seguir em frente.

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