Nova York foi um outdoor pop com luzes de néon, travestis sorridentes, táxis amarelos, charos infinitos, seringas heroínicas, garrafas vazias, prédios enormes, ruas retas numeradas… Lou Reed, desavergonhado, vagabundeava em NY — como Henry Miller nos anos 20.
Amor e esperança se misturam a facas reluzindo no escuro. Cenário urbano dos delírios noturnos vividos por Reed, tal qual revela a biografia definitiva “O Rei de Nova York” (BestSeller). O livro chega com pompa de o melhor já escrito sobre um certo perfect day.
Publicada pelo crítico Will Hermes, a obra reconstrói fatos pouco explorados, seja em matéria existencial ou até mesmo artística. O pesquisador conseguiu acesso exclusivo ao acervo de Reed na Biblioteca Pública de Nova York, em cujos documentos debruçara-se durante anos.
Hermes procurou personagens importantes para a vida sentimental de Reed, caso de Rachel Humphrey, mulher trans, com quem o artista se relacionara entre 76 e 78. Hábil nas ambientações nova-iorquinas e preciso na colocação verbal, o autor, especialista em música, descreve apartamentos sem água quente no inverno rigoroso de Lower East Side.
À medida que aprofundamos na leitura biográfica desse fascinante personagem (contexto histórico e relevância estética amparam narrativa), somos intimados a viajar pelo lado escuro de Nova York. Aqui, chegamos ao clímax narrativo, com a metrópole zunindo precioso material ao poeta flanador até virar sua musa das perdições sexuais.
Há dez anos, enquanto escrevia “O Rei de Nova York”, Hermes falou ao “New York Times” que a cidade ocuparia espaço importante no livro. “Reed a amava profundamente, baseou sua vida adulta aqui, enraizou muito de seu trabalho aqui e foi uma grande figura em nossa vida cultural. Ele foi um dos maiores artistas da nossa geração”, afirmou.
Radicado na ilha de Manhattan, o artista nasceu em Long Island no dia 2 de março de 42. Tempos depois, adolescente, apaixonou-se pela música. Curtia a rádio WGBB, estação preferida dos jovens: coisas como Fats Domino (rhythm and blues) e Hank Ballard (blues) tocavam por lá. Segundo a irmã, porém, tinha “temperamento frágil” — sofria de pânico.
Hermes afirma que o rock’n’roll era um R&B “repaginado racialmente”. “Foi criado nas décadas de 40 e início de 50 por vários artistas, a maioria deles negros — Sister Rosetta Tharpe, Louis Jordan, Goree Carter, Roy Brown, Wynonie Harris, Ike Turner, Chuck Berry”, contextualiza.
Embora tivesse entrado em estúdio pela primeira vez no fim dos anos 50, foi com The Velvet Underground que Reed estreara em disco, em 67. O artista visual Andy Warhol apadrinhou grupo nova-iorquino, cujo guitarrista, cantor e compositor, percebemos, abraçara dissonâncias estranhas, microfonias inusuais e power chords martelantes.
Com quatro acordes, Reed levou ao universo roqueiro crônica urbana. Abre álbum debutante descrevendo sentimento do desassossego químico que acomete junkies quando o sol dá as caras no domingo pela manhã. “Cuidado! O mundo está atrás de você”, avisa, inconformado, em “Sunday Morning”. Jazz era cool, sabemos. E rock, bem, rock se associava à histeria dos Beatles, à lascividade taradona dos Rolling Stones, aos versos politizados de Bob Dylan.
Sexo e drogas
Ninguém havia tratado sexo e drogas com tamanha objetividade: “The Velvet Underground” sensualizou sadomasoquismo na faixa “Venus in Furs”. E, não satisfeito, alternou-se entre caos e calmaria com “Heroin”. Tilintou, por sua vez, acordes belíssimos em “All Tomorrow Parties”, retratando cafonice da elite nova-iorquina para delírio de Warhol.
Nos anos 70, Will Hermes foi à loucura com obra de Reed. Na faculdade, jovem em amadurecimento (sexualmente, inclusive), descobriu o Velvet e sua música que menospreza verdades universais. “Considero o Velvet Underground uma das maiores bandas de rock do mundo, ao lado dos Beatles, dos Stones, do Funkadelic, do Grateful Dead”, elege o jornalista.
Mas Velvet ostenta, digamos, status inusitado: ao mesmo tempo que é clássico, como sabemos, é lembrado por ser o grupo de rock mais foda que vendeu menos. Com Reed à frente, a banda lançou quatro discos. O derradeiro, “Loaded”, saiu em setembro de 70.
Reed situa-se ao lado de Mick Jagger e Keith Richards, John Lennon e Paul McCartney, Neil Young e Bob Dylan na música popular do século 20. Ou seja, sofisticou o estilo maldito de forma que, mesmo assim, o mantivesse agarrado à rebeldia, embora sacasse da música aquilo que entendia desnecessário: solos masturbatórios, firulas harmônicas, metáforas caducadas. Interessava-lhe a carne crua, vivíssima.
Suas letras, quase jornalísticas, narravam uma junkeira selvagem, com putas nas esquinas à procura de sexo e cafetões sedentos por grana, como ouvimos no disco “Transformer”, clássico publicado em 72. Eram versos emoldurados por musicalidade devassa, visceral, de modo a acentuar as idiossincrasias indigestas desses tipos urbanos.
Para Hermes, o que melhor define Reed — além da coragem, beleza, inteligência e “afiada sagacidade nova-iorquina” — é aquilo que coloca-o no topo da criação artística: empatia. Leitor do beatnik William S. Burroughs (era queer, como o personagem William Lee), vê-se tal característica no depressivo “Berlin”, álbum de 73, e na obra-prima “New York”, de 89. “Lou Reed: O Rei de Nova York” é uma ótima companhia.
O REI DE NOVA YORK
Autor: Will Hermes
Páginas: 576
Editora: BestSeller
Preço: R$ 179,90