A interação dos sentidos, em que uma imagem não só vale mil palavras, como uma infinidade delas. Na exposição “Como é a pintura, a poesia é”, que será aberta hoje, às 19 horas, no Centro Cultural da UFG, o artista multimídia Luiz Martins é assim: “escreve” um novo poema a cada olhar. Faz isso a partir da sensibilidade para ler o mundo, além de uma técnica plural que trabalha, aliada à curadoria do goiano Samuel de Jesus.
O artista mineiro, que vive em São Paulo, após uma temporada de projetos realizados na Itália, Áustria e Portugal, traz nesta mostra cerca de 25 obras, que convidam o observador a um mergulho em leitura visual. Através de uma amplitude técnica admirável, ele imerge nas linguagens bidimensionais e tridimensionais.
E o resultado disso tudo tomou forma em cerca de 25 obras, entre colagens em papel sobre madeira ou em folhas de jornais e livros; esculturas e desenhos em papel. É preciso ressaltar que as pesquisas com aço, madeira e papel revolucionaram a carreira de Luiz Martins, pois marcam o início de sua convivência com o artista e jornalista Zélio Alves Pinto e com a arte rupestre brasileira.
Depois disso, criou personalidade artística própria e um trabalho que despertou interesse em salões de arte de grande parte do País. A carreira internacional também chegou logo e veio após Luiz conquistar o prêmio Novos Novíssimos do Ibeu – Rio de Janeiro e ser convidado pelo colecionador Cristian e Larissa Weilland para expor em Viena. Lá, sua arte prosperou e hoje ele até divide um ateliê fixo com o artista venezuelano Gustavo Mendez, na capital da Áustria.
Seus trabalhos bidimensionais já chegaram ainda a diversos outros países. E aqui no Brasil Luiz Martins também segue desenvolvendo projetos artísticos, como “Corpo Silente”, que fez com o curador Enock Sacramento. Também lançou o livro Origens com o curador Paulo Miyada, um recorte de sua obra. Atualmente, o artista vive e trabalha entre o Brasil, Áustria e Itália. Por todos os locais em que passa está sempre acompanhado de um caderno, no qual saem suas leituras mais profundas de tudo o que o cerca.
“Luiz Martins extrai o seu experimento estético que alcança através das artes a linguagem universal. Suportado pela práxis de lidar com matérias orgânicas e aproximá-las de suportes impressos, utiliza como insumo a escrita, que através da impressão gráfica tece um novo relevo. Assim, o artista se apropria do domínio técnico para através de contínuas interferências físicas transformar a matéria em sua obra, com maestria e poesia”, disse o curador e professor Roberto Bertani, que desenvolveu o texto da exposição.
ENTREVISTA LUIZ MARTINS – POR VINÍCIUS FIGUEIREDO
Aproveitando que a exposição abre hoje, convidamos o artista plástico Vinícius Figueiredo para bater um papo artístico com Luiz Martins, não apenas sobre “Como É A Pintura, A Poesia É”, mas ainda a respeito de seu processo criativo e a atual cena cultural brasileira. O resultado foi uma conversa cheia de propriedade e sensibilidade própria de quem vive, não apenas de fazer, como ainda de decifrar e enaltecer a arte. Confira trechos da conversa a seguir.
Vinícius Figueiredo- Primeiramente, agradeço muito a você, Luiz, por me conceder esta entrevista. E, se é para começarmos, vamos retomar aquela conversa de botequim, entre uma dose e outra... Em uma de nossas reflexões sobre o livro As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, acabamos pensando no título da sua mostra individual em Goiânia: “Como é a pintura, a poesia é”, em que ambas – criação poética e produção visual – dialogam. Como você trabalha esse diálogo, essa relação?
Luís Martins- Não acredito que seja um diálogo; é muito mais um motor-condutor na minha criação… Vejo a literatura como aliada do meu processo, como uma outra expressão criativa para alinhavar meu pensamento visual. A literatura é, neste caso, muito mais mental, imaginativa, no processo de interação com o leitor; já no campo das artes visuais, esse diálogo se dá muito mais pela interação, um jogo do corpo no espaço.
VF– Duas questões são, no meu entender, marcantes em sua obra: a relação com o espaço que se estabelece por meio dos objetos e instalações, e a representação de um “entrelugar” ou de um “não lugar”, que surgem, sobretudo, na tessitura entre os fragmentos da memória e processos de desenho. O desenho, aliás, é muito importante no seu trabalho. Como você descreveria, enfim, o seu processo criador?
LM- O desenho é o “corpo” da minha obra sempre. É um desenho físico, o meu momento de combate entre pensar e criar. O meu processo de criação é diário. Eu processo tudo em minha volta a todo momento e, por isso, carrego um caderno de anotações, que é meu companheiro fiel, dia e noite, onde deposito tudo o que penso. Meus sonhos, desejos e vontades... Então, crio um arquivo de informações que sempre estou consultando ao longo do processo. Minha obra nunca está fechada, é totalmente aberta em todos os processos, vou e volto a uma ideia a todo momento. Esse processo de trabalho é importante para mim, minha rotina é estar sempre no atelier, pelo menos 10 horas por dia; em alguns momentos, apenas observo; noutros, trabalho como maluco, cortando madeira, desenhando, pintando, fazendo matrizes de gravura. Procuro explorar todas as possibilidades de uma nova ideia ou, muitas vezes, trabalho também com ideias de tempos atrás, como um arqueólogo do próprio processo. Afora isso, quando não estou produzindo, crio e executo maquetes de ideias como uma maneira de desenhar em tridimensional. Assim, percebo todas as possibilidades e proporções da ideia no espaço. Meu trabalho é, portanto, sempre um processo e nunca finalidade; e finalizado é quando ele “sai de mim”, vai embora. Tenho um amigo e conselheiro, o Roberto Bertani [do Instituto de Cultura Contemporânea, São Paulo], que sempre afirma que adora ir ao atelier porque os trabalhos, via de regra, sofrem mutações, de modo que nunca se verão coisas repetidas. É o que penso, por exemplo, também em relação ao meu trabalho, que é aberto, sempre podendo se transformar ou não existir mais...
VF- Em seu trabalho, percebemos o uso de signos de culturas distintas, a exemplo da iconografia religiosa. Estes signos tradicionais surgem em composições que dialogam e problematizam questões do mundo contemporâneo. Como a ancestralidade e os conceitos de sacro e o profano se apresentam em suas obras?
LM- Desde o princípio, meu trabalho tem como suporte as heranças primitivas, os sinais de comunicação deixados pelo homem. Neles, baseio e estruturo todas as formas que desenvolvo. Quanto ao profano e ao sagrado, para mim, trata-se de uma questão muito mais política. Procuro compreender o quanto o homem é um animal bruto, uma rocha. No tocante à percepção do outro, sempre trabalhei com texturas porque aprecio a materialidade. Quando comecei a criar objetos e, nesse corpo, a colocar uma matéria, descobri essas chapas velhas, usadas, que encontro por aí. Elas, na verdade, têm muito mais a dizer do que uma chapa nova. Então, não faço nada, apenas deixo que “falem”. Depois de muito tempo, pensei nesse homem contemporâneo, em seus valores, conceitos, religião e fé. Busquei, dessa forma, algo que pudesse falar de tudo isso sem ser radical, algo muito discreto e conceitual. Pensei no dicionário, na Bíblia e no jornal e, então, os conceituei como objetos criados pelo homem para manipular as grandes massas. Nesse sentido entra, para mim, o profano e sagrado: não consigo entender como o homem mata em nome de Deus... Determinei, por exemplo, que no dicionário o homem busca respostas profanas; na Bíblia, respostas sagradas; e os jornais são a manipulação do presente, a construção de uma sociedade burra ou manipulável; quase sempre, no meu ver, esse suporte constrói e contribui para criar uma sociedade manipulável que não consegue pensar.
VF- Luiz, qual o lugar da arte contemporânea brasileira hoje? E em relação ao público, que desafios ele ainda precisa enfrentar?
LM-Um bom terceiro lugar – é o lugar da arte contemporânea brasileira. Quanto ao público, o desafio seria a educação. Não falo de ensinar a ler e escrever, mas uma educação que instrumentalize a população a ir a um museu, a uma galeria... Infelizmente, nossa sociedade prefere ver um jogo de futebol a ir a um museu, porque no museu ela precisa pensar, e não foi educada pra isso...
VF- Para finalizar, gostaria que você convidasse o público goiano para a sua mostra e falasse um pouco das suas impressões sobre o seu último trabalho.
LM- Agora você me colocou em uma encruzilhada... como convidar o goiano? [risos]. Acredito que as pessoas que puderem ir ao Centro Cultural vão se deparar com um trabalho honesto, não manipulável pelo mercado, algo consciente e com muito respeito pelo observador. Espero que o público consiga, de alguma maneira, levar algo de positivo para o seu dia e que, ao sair, possa questionar algumas possibilidades e novos caminhos de sentir a arte. Porque, para mim, arte é tudo aquilo que se completa, é um pulo no abismo da vida e só cabe aos corajosos...
“COMO É A PINTURA, A POESIA É” – EXPOSIÇÃO INDIVIDUAL DE LUIZ MARTINS
Onde: Centro Cultural da UFG (Av. Universitária, 1533 - Setor Leste Universitário)
Abertura: Hoje, às 19h
Visitação: Até 26 de janeiro de 2018, das 9h às 17h30 (segunda a sexta-feira)
Telefone: (62) 3209-6499