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ENTRETENIMENTO

A festa Liberté não é saudosista, tampouco autocentrada

Entrei no Tubarão Vermelho por volta das 18h de quarta-feira (23) e o jornalista revolucioná­rio Carlos Durruti perguntou como eu me sentia. Disse-lhe que meu coração mais um pouco pularia para fora do peito. O ar estava fresco e no céu a lua despontava, era como sentar em um café parisiense e encher a cara de vinho e haxixe com o poeta francês Charles Baudelaire. Então a fotógrafa Maia quis saber quando eu pretendia dar as feli­citações a Carlos. “Meu Deus! Seu des­graçado! Hoje é seu aniversário! Mui­tos anos de vida, de sexo, de amor, de drogas, de revoluções e da porra toda”, exclamei, com peso na consciência.

Durante o trajeto para o Cabaret Vol­taire enquanto o alto-falante ampliava um punk rock, eu refletia sobre como seria daqui para frente. Ora, há um ano ninguém de nós pensava sequer em ter uma cooperativa de jornalismo inde­pendente, ou que fosse possível criá-la com pouco – ou quase nada – de grana. Talvez estivesse mergulhado em mais um de meus medos e delírios cotidianos. Mas acho pouco provável que tudo isso que venho pensando nos últimos tem­pos seja apenas um mero devaneio de um jornalista alcoólatra.

Carlos estacionou o Tubarão Verme­lho no Bar do Jair. “Xico, você pode com­prar uma cerveja Sol para eu poder fazer a intervenção da noite, enquanto eu e Maia vamos buscar Alexia no Campus 2?”, per­guntou. Assenti com a cabeça, respon­dendo que não teria problema algum. “Muito bom”, agradeceu Carlos, seguran­do a mão de Maia como se fosse um me­nino ansioso em relação ao futuro.

Conheci um cara que se chamava sei lá o que – “mas pode me chamar de Rimbaud, por favor, pois eu escre­vi quatro livros de poesia e sou um dos melhores nessa merda em Goiás” – e que estava aquecendo seu fígado para chegar calibrado na festa Liberté – Maio de 2018. “Tô pronto para botar pra que­brar lá, mano. Por isso estou aqui come­çando os trabalhos”, falou. Beberiquei o último gole que havia na lata de cerve­ja que eu segurava na mão. “Quer mais uma?”, perguntou. Agradeci a gentileza e expliquei que ninguém gostaria de ver um dos organizadores do evento en­tornando logo cedo. “Porra, vamos ter de te educar”, disse Rimbaud, olhando para o dono do estabelecimento. “Ar­ruma mais uma pra ele...”

Aceitei, lembrando os ensinamentos de meu pai: nunca dispense uma boa ação. “Certo, me dá essa cerveja porque ninguém é obrigado a ficar horas em pé sem sequer molhar a palavra”. Rimbaud aprovou com a cabeça.

Carlos estacionou seu Voyage em fren­te ao bar. “Olha”. Rimbaud me cutucou para garantir que eu estava escutando. “Vou nessa tua festa mais tarde e acho melhor que ela seja massa. Adoro essa coisa de movimento social, valorizo o trampo de manter viva a memória his­tórica e coletiva da galera que se fodeu no bojo das manifestações de junho de 2013. Pensar na importância de Maio de 68 é fundamental para a poesia, para as artes, para a música e essa coisa toda. Porra, é preciso saudar o ímpeto revolu­cionário dos jovens e trabalhadores que atuaram ativamente em 68”.

Acendi um Minister e entrei no Tu­barão Vermelho. “Então”, disse Carlos, “a gente precisa chegar o mais rápido possível no Caberet, porque ainda falta terminar a decoração”. Entreguei a long­-neck de Sol para meu companheiro. En­tão Maia relatou que havia gente pergun­tando se já rolava de ir à festa.

“Não, é óbvio que não”, falei. “Precisa­mos terminar de colar os cartazes, não?”.

“Sim”, respondeu Maia, olhando para mim ao melhor estilo ‘vou te matar, seu filha da puta’. “É isso que temos de fazer o mais rápido possível”.

“Nossas mães ainda vão ter de ir ba­nhar e depois vão voltar para a festa”, pon­tuou Carlos.

Dei de ombros. “Então sem chance de autorizarmos a galera a colar, porque senão logo, logo terá um monte de gen­te querendo encher a cara e, provavel­mente, eles ficarão grilados quando ve­rem que ainda nem começamos a fazer a merda da festa andar. Inclusive, creio que terá um atraso de alguns minutos em relação à programação. Só que nin­guém, na verdade, se importa com isso”.

Maia não falou nada e Carlos balan­çou a cabeça. Ao parar em frente ao Caba­ret, reclinei-me no banco de trás e puxei minha mochila. Abri-a e tirei dois exem­plares da matéria que escrevi sobre a fes­ta Liberté – Maio 2018 na edição de quar­ta-feira do Diário de Notícias.

“Muito bom, vou deixar aqui”, falou Maia, apressadamente.

“Sensacional, meu caro”, elogiou Carlos.

“É um texto que não é meramente so­bre a festa. É um pouco sobre a história do movimento social em Goiânia”, falei.

“Tá, depois vou ler”, emendou Maia, laconicamente.

Minutos depois, quando eu estava concentradíssimo na conversa que vi­nha tendo com Cigana, Maia agarrou meu braço, pedindo para que não ‘fri­tasse’ nela durante a festa. Respondi que estava tranquilo em relação a isso e que já tinha algumas “manas eston­teantes” que estavam em mente. Ela abriu um sorriso, deu-me um abraço levemente amigável e caminhou em direção à cozinha do Cabaret.

No primeiro turno da portaria, que era das 19h15 às 20h15, fiquei basica­mente bebendo uma cerveja atrás da outra, escondida no balcão, e trocando olhares – que não sei muito bem o que significaram – com Cigana.

Para que a aparição dela faça algum sentido, é necessário falar um pouco mais sobre sua libertária personalida­de. Conheci-a no primeiro, ou talvez, segundo período da faculdade de jor­nalismo da Pontifícia Universidade Ca­tólica de Goiás, embora ela cursasse Di­reito na instituição mais conservadora do Centro-Oeste. Sempre com opinião contundente e comportamento trans­gressor, com ela não há esse negócio de correr atrás de homens. Olhar forte, re­tórica articulada e sorriso intimidador... uma mulher da porra. Os caras vão até ela, porque não lhes resta outra opção. Mas muitos são trágicos: destilam co­mentários horripilantes sobre a vida, so­bre amor, sobre sexo. Por outro lado, eu nunca soube muito bem como me com­portar, e sempre deixei passar momen­tos e experiências a serem sentidos. Ela é uma mistura do lirismo do uruguaio Eduardo Galeano com a emancipação feminina da brasileira Elza Soares.

Uma combinação do caralho.

“Você pode cuidar de nossas bolsas?”, perguntou Cigana.

“É claro”, respondi.

“Vou sair um pouco ali fora, mas já volto”.

“Sem problemas”, fitei-a, como se fos­se um personagem que pulou das pági­nas de algum romance de Henry Miller.

As horas próximas horas da festa fo­ram pesadas. Faltando alguns minutos para celebração propriamente dita ini­ciar, eu não havia conversado com ne­nhuma banda, nem nada do tipo. Aliás, nem sabia de cabeça qual seria a ordem das apresentações, o que me impossibi­litaria totalmente de correr atrás dos mú­sicos se houvesse algum atraso ou impre­visto. Quanto mais eu ponderava sobre minha preguiça jornalística, mais depri­mido me tornava. Que tipo de profissio­nal eu seria? Um ser completamente di­fícil de lidar, sem dúvida. Talvez algumas horas de conversa aleatória seria sufi­ciente para essa paranóia maluca sair de mim. Meu plano era simples: eu preci­sava apenas andar pelo Cabaret, captar as conversas das pessoas enquanto elas aconteciam, sem gravador, nem nada do tipo, encher a cara e ver pelo menos um ou dois shows e umas três performances, incluindo declamações de poemas, que prometiam ser libertárias.

O único momento que lembro com relativa clareza fora minha dança alta­mente bizarra ao som de Retalha Vento: uma cena grotesca, tosca e lastimável. Es­tava mexendo meu quadril movido pelo molejo de um samba sensacional.

Mas dane-se isso tudo que vocês en­tendem como jornalismo. Acredite, não foi nada fácil dançar com Cigana. Na ver­dade, observando do alto da minha ca­deira e do teclado que me ajudam a pôr essas palavras no papel, foi mais ou me­nos como se Hunter Thompson sentasse com Virginia Woolf para beber um café ao mesmo tempo em que segundas inten­ções estão pairando sobre o ar.

Enquanto isso, Carlos cutucou meu braço, segurando-o. “Tá tudo de boa?”, in­dagou, bêbado. Olhei-o, provavelmente com uma das sobrancelhas arqueadas, vertendo jocosidade. “Ora, na medida do possível, sim”, respondi.

À meia-noite, eu ainda não tinha tro­cado sequer meia dúzia de palavras com integrantes das bandas e estava comple­tamente bêbado de cerveja. Não para­va de imaginar como eu conseguiria es­crever 5 mil caracteres contando sobre minha experiência, sentimentos e sen­sações na festa. Se tivesse ouvido os con­selhos de Maia mais cedo, não me encon­traria em situação tão deplorável. Mas sou um cara extremamente teimoso, o que me impede de tomar qualquer atitu­de com um pingo de sensatez. Finalmen­te, depois de ter perambulado por vários lugares e ter torrado a paciência de Ciga­na com minha verborragia cômica e irri­tantemente etílica, decidi que deveria ao menos prestar atenção no que rolaria da­qui para a frente. Ora, existe alguma expli­cação minimamente plausível para um sujeito abdicar de sua função profissio­nal e social para não fazer absolutamen­te porra nenhuma?

Cristo do Céu, pensei. Isso terminou de foder minha desgastada imagem com Maia. Criei no fundo da mente uma foto do Raoul Duke importunando seus che­fes na época em que lhe pautaram para cobrir a corrida de motocicleta Mint 400, mas o filha da puta se recusara a findar o trabalho e gastara o adiantamento em drogas da mais alta pureza e procedên­cia, álcool etílico de concentração estra­nhamente potente e carros de último modelo que pareciam máquinas voado­ras rumo ao planeta marte... bom, e daí? Bem, o que preciso salientar aqui é que a gente poderia se abastecer de cocaí­na e ir trabalhar ligado no 200 watts, rin­do histericamente dos reacionários que ocupam os espaços delimitados pelos donos do poder e bebendo cerveja Hei­neken para ninguém achar que éramos anormais. Talvez poderíamos organizar um desses saraus cujo objetivo é render umas boas notas de R$ 50: “Deixe um demente, integrante do coletivo Meta­morfose, declamar sua intervenção ar­tística. Não PERCA tempo!” A interven­ção artística provavelmente seria algum texto esquisitamente gonzo que escrevi em algum momento da vida e que quase custou minha cabeça por onde trabalhei.

Ainda bem que essa ideia horripilante saiu de minha cabeça. Mas preciso ressal­tar um ponto da festa, um dos poucos que tive condições de acompanhar por intei­ro: a performance da fotógrafa Maia. Puta que pariu! Com apenas um casaco azul escuro e com black bloc no rosto, ela su­biu em uma escada e ficou em cima de uma balança, onde jogou sua única ves­timenta para os ares. Em um de seus ma­milos, foi possível ler a frase “hetero frá­gil”. Enquanto isso, Carlos acendeu um coquetel molotov, mas o álcool que ser­via como combustão para o fogo ilumi­nar a intervenção de sua companheira escorreu entre os dedos da mão. Então, no momento em que bateu o isqueiro, as chamas se alastraram e uma bolha gi­gante saltou em seu punho.

Depois deste momento, o que mais se falava entre as pessoas que estavam lá era a “estética porra-louca daquela me­nina”. Por outro lado, uma galera dadaís­ta não compreendeu muito bem o que Maia queria passar com sua intervenção. Nada de anormal.

Mas foda-se isso tudo. Na verdade, em tempos repressores, nada melhor do que literalmente chutar a cara da sociedade com posturas que, é claro, vão dar o que falar, mas também irão despertar maior consciência nas mu­lheres. Ser convencional não é uma op­ção plausível tanto para Carlos quanto para Maia, e eles certamente quiseram expressar suas respectivas revoltas e mostrar a essência da palavra liberda­de, usada de forma equivocada pela maioria das pessoas em nossa doente sociedade. No final da apresentação, Maia pulou para a parte de cima do Cabaret, escondendo sua nudez cas­tigada e deixando um gosto de quero mais nos irrisórios machos que esta­vam lá só para vê-la pelada.

Boquiaberto, o público ficou meio sem entender o que estava de fato acon­tecendo com aquela “menina muito lou­ca”. Perambulei por alguns pontos da casa e ouvi a galera tecendo comentários elo­giosos sobre a intervenção dela. Eu tinha conhecimento prévio de que ela iria fazer uma performance impactante, porém não sabia que teria esse impacto todo.

O resto não tenho condições de re­latar nestas linhas de puro jornalismo gonzo. Na verdade, nossa imprensa e as pessoas que a integram são incapa­zes de compreender a loucura que nor­teia esse tipo ácido e alucinado de jor­nalismo. Sim, porque se você é um cara com tendências esquisitas, vagabundas e químicas é melhor arrumar um jeito para ser pago relatando isso, ou irá cair na primeira prisão – se não for parar na sarjeta, pois todos os chefes que lhe empregaram em algum momento irão querer ver o espírito do poeta e mari­nho Walt Whitman ao seu.

Minutos antes de encerrarmos as ati­vidades, Maia teve problemas com um sujeito que se dizia músico. Eram 4h da madrugada:

“Moça, boa noite”, saudou. “Posso to­car?”

“Não, as apresentações estão acaban­do”, disse Maia.

“Nem uma música... pode chamar Carlos, por favor?”

“Olha, cara, não insista, porra. Você não sei entrar aqui, não”.

“Chama o Carlos...”

Intervi:

“Meu ilustre, você não vai entrar aqui de jeito nenhum...”

“...Calma”, respondeu ele, nitidamen­te abalado.

“O negócio aqui tá perto de acabar e tal”.

“Você não sabe quem sou eu?”

“Não”, falei, “não faço a mínima ideia, deveria?”

Depois desse diálogo escabroso, o tal músico foi embora para sei lá onde.

No final da festa, eu já não conseguia me lembrar de muita coisa. Cigana foi embora, e eu dormi sentado em uma cadeira na entrada do Cabaret Voltai­re. Ao abrir os olhos, com o sol matuti­no matando o ímpeto boêmio que es­tava em mim, veio-me alguns fleches dignos de cenas lamentáveis. “O que você achou da nossa capacidade de fa­zer uma festa?”, perguntou-me Maia, quando o sol estava despontando no céu para matar o ímpeto boêmio da ga­lera. “Bem”, respondi, “creio que vocês estão de parabéns, porque ficou muito bom tudo isso”. Com os olhos brilhan­do, ela me disse que a sensação de ‘mis­são cumprida’ era reforçada pelo fato de que nunca organizou um evento desse porte. “A cena cultural dessa cidade está mudando”, refleti, em voz alta.

Permaneci sentado em uma cadei­ra na entrada do Cabaret. Levantei e encontrei Maia e Carlos em um mo­mento a dois. Não quis atrapalhá-los. Na verdade, não queria conversar com eles de jeito nenhum. Vi-os de relan­ce, evitando o máximo de contato vi­sual possível. Testemunhar tudo isso me trouxera diversas lembranças – não de coisas que fiz e senti, mas de coisas que fracassara milagrosamente em fa­zer, de horas desperdiçadas com pes­soas inúteis, momentos frustrados e oportunidades perdidas para sempre. O tempo ainda não chegou a devorar uma porção da minha vida, mas eu po­dia ouvi-lo me alertando para desen­canar e seguir em frente.

O futuro é como o rock psicodélico de Jefferson Airplane ecoando pelo som.

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