Home / Entretenimento

ENTRETENIMENTO

A lira de García Lorca

Homossexual numa Es­panha pré-franquismo (1939-1975), ditadura fascista responsável por dizimar anarquistas, comunistas e so­cialistas, o poeta Federico Gar­cía Lorca nasceu no dia 5 de ju­lho de 1898, em Fuente Vaqueros, província de Granada. Filho de professora, aprendeu a ler e es­crever cedo. Seu primeiro livro de poemas, Impresiones y paisa­jes (1918), foi lançado quando ele tinha 19 anos. Prodígio em prati­camente tudo o que fez ao longo de sua curta vida, desde as peças de teatro aos versos flamejantes, resolveu também enveredar para o campo das palestras e tornou-se um conferencista aclamado.

Em 1918, o escritor mudou-se para Madri para cursar Direito. Sem vocação, fez Letras e Filoso­fia. Viveu por 10 anos na resi­dência de Estudantes de Madrid, onde chegou a dividir o quarto com o amigo e futuro diretor de cinema Luis Buñuel (1900-1983), idealizador do curta-metragem Cão Andaluz (1930). Machista, o cineasta não perdia a oportuni­dade de tecer comentários depre­ciativos acerca do poeta. Também foi vizinho do pintor surrealista Salvador Dalí (1904-1989), mas o artista era conservador e o rela­cionamento de ambos teve vários altos e baixos. Do convívio, nas­ceu desenhos de Dalí dedicados a Lorca e o cenário da peça Ma­riana Pineda (1925).

Em entrevista à Revista Cult, a cientista social Syntia Pereira Alves disse que Lorca admirava bastante Dalí, porém o poeta “in­fluenciou mais o pintor do que o contrário”. “Já era famoso quan­do os dois se conheceram, na Re­pública dos Estudantes. É o Lor­ca quem abre caminho para Dalí, apresentando-o às rodas de artis­tas da Espanha”, explica a estudio­sa, autora da tese Teatro de Gar­cia Lorca: a arte que se levanta da vida. Convencido por Buñuel a ir trabalhar em Paris, onde estaria reunida a Geração Perdida, Dalí passou a rejeitar o poeta, que se mudara para Nova Iorque com o objetivo de estudar na Universi­dade de Columbia.

Na terra do Tio-Sam, Lorca pu­blicou o livro O poeta em Nueva York (1929), considerada uma de suas melhores obras. Seis anos de­pois, quando regressou a Espanha, foi brutalmente assassinado pe­las tropas franquistas. Na ocasião, chegou a ser retirado à força da casa de amigos, em uma grande operação que cercou todo o quar­teirão. O escritor foi fuzilado pelos fascistas junto com três anarquis­tas. Episódio europeu mais dra­mático antes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), tendo pro­vocado a morte de milhares de pessoas, o franquismo instaurou uma espécie de “caça aos intelec­tuais” opositores do regime.

Após os fascistas praticamente destruírem toda a Espanha e fa­zendo com que o “generalíssimo” chegasse ao poder, as maiores in­teligências do País figuram do re­gime autoritário. Toda a vanguar­da artística partiu para o exílio no México, sob a proteção do então presidente Lázaro Cárdenas (1895- 1970). Para ser ter uma ideia, o di­tador espanhol chegou a proibir línguas regionais, como o catalão e o basco, acentuando ainda mais o sentimento separatista na popula­ção dessas províncias. Franco per­maneceu no governo até 1975, ano em que morreu, quando o rei Juan Carlos (escolhido por ele mesmo), assumiu o trono. A obra de Garcia Lorca ficara censurada na Espa­nha por 20 anos.

POLÍTICA

O ano de 1936 é o mais en­gajado politicamente na vida do escritor. No primeiro semes­tre, Garcia Lorca explicitou suas ideias sobre teatro, poesia e cul­tura espanhola, além de deixar bem claro seu apoio à Repúbli­ca e seu total repúdio ao fran­quismo. Pouco antes das elei­ções, Lorca participou de atos favoráveis à Frente Popular (con­trária ao regime ditatorial que se vislumbrava), e, em março, assi­nou um telegrama enviado ao ex­-presidente Getúlio Vargas (1882- 1954) em que pedia a liberdade do militante pelo Partido Comu­nista Brasileiro, Luiz Carlos Pres­tes (1898-1990). Após ser fuzi­lado, Lorca se transformou em símbolo de resistência artística.

“Houve consternação em todo o mundo de língua espanhola, e a imprensa europeia também no­ticiou o assunto. Quase da noite para o dia Lorca tornou-se um mártir republicano”, diz o escritor irlandês Ian Gibson na biografia do poeta. Décadas depois, espe­cialmente durante o movimento de contestação de valores da so­ciedade burguesa, na década de 1960, o poeta passou a ter seus escritos ligados aos movimen­tos de liberdade sexual em fun­ção da justificativa pela qual se deu sua morte: a homossexuali­dade. Na década de 1970, o poe­ta passa a ser associado também a questões políticas e sociais na América Latina, sobretudo nos países que passaram por ditadu­ras militares.

A causa da morte faz parte do passado sombrio da Espanha. Se­gundo Gibson, “o documento da morte de Lorca foi feito no Regis­tro Civil quase um ano após o fuzi­lamento dele. O documento decla­rava que Lorca morreu ‘no mês de agosto de 1936 em consequência de ferimentos de guerra’. Para o mun­do, dava a impressão de que ele ti­nha sido vítima de uma bala perdi­da”, afirma o biógrafo. A visão que o mundo teve foi que o escritor tinha sido vítima de bala perdida. “Não foi à toa que Lorca foi assassinado jun­to de dois homens que eram anar­quistas”, defende Syntia.

Em 1968, ano em que fora im­posto pela Ditadura Militar (1964- 1985) no Brasil o Ato Institucional Número 5 (AI-5), vincular poemas de Lorca, ou até mesmo montar suas peças de teatro nos grandes centros, representava desafiar, ain­da que indiretamente, a Ditadura Militar. “Lorca se transforma em uma bandeira de luta. Existem re­latos de pessoas declamando seus poemas em lugares públicos. De­clamavam: ‘Verde que te quero verde’, e outros poemas aparente­mente não políticos, interpreta­dos como libelos contra a opressão pela forma como Lorca foi assassi­nado, como um mártir na luta pela República”, conta o ator e diretor de teatro Rodrigo Mercadante, em en­trevista à Revista Cult.

POEMAS

VOLTA DE PASSEIO

Assassinado pelo céu,

entre as formas que vão até a serpente

e as formas que buscam o cristal,

deixarei crescer meus cabelos.

Com a árvore de cotos que não canta

e o menino com o branco rosto de ovo.

Com os animaizinhos de cabeça rota

e a água esfarrapada dos pés secos.

Comtudooquetemcansaçosurdo-mudo

e borboleta afogada no tinteiro.

Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia.

Assassinado pelo céu!

GAZEL DO AMOR DESESPERADO

A noite não quer vir

para que tu não venhas,

nem eu possa ir.

Mas eu irei,

inda que um sol de lacraias me coma a fronte.

Mas tu virás

com a língua queimada pela chuva de sal.

O dia não quer vir

para que tu não venhas,

nem eu possa ir.

Mas eu irei

entregando aos sapos meu mordido cravo.

Mas tu virás

pelas turvas cloacas da escuridão.

Nem a noite nem o dia querem vir

para que por ti morra

e tu morras por mim.

Leia também:

  

edição
do dia

Capa do dia

últimas
notícias

+ notícias