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ENTRETENIMENTO

Dois anos de Libertária

Bb b b b b b b b b b b b ­brrrrrrrrrrrrrrzzzzzzzzzzzz… Você deve estar se pergun­tando por que caceta resolvi escrever uma matéria sobre a Rádio Libertá­ria. Ora, deixe eu tentar te convencer, vai que dá certo. Vamos lá: foram 11 dias vivendo intensamente (às ve­zes até perigosamente) as aventuras utópicas que tinham como objetivo democratizar os meios de comuni­cação em Goiás, procurando dar voz ao movimento contra a PEC 241, que congelou gastos por 20 anos em edu­cação e saúde.

E mais: as amizades que surgi­ram a partir daqueles dias, as pai­xões repentinas, os casais que se formaram, as tretas e o escambau, dentre outros incontáveis episó­dios que me fogem do cocuruto enquanto ponho estas linhas sub­versivas no papel. Era como sen­tir o que rolava na mente da galera que lutou contra a Ditadura Mili­tar (1964-1985) – nem que fosse só uma fagulha.

Bem, reconheço que meu fluxo narrativo mais parece uma esqui­zofrenia literária do que um texto jornalístico, mas a intenção desde o início foi fazê-lo de uma forma que se aproximasse dos ensina­mentos do doutor Hunter Thomp­son (1937-2005). Daí as referências descaradas que faço ao jornalis­mo gonzo (estilo narrativo que pro­porciona ao jornalista se inserir no fato). Toda essa maluquice poderá ser conferida no livro-reportagem Diário subversivo: dias de embria­guez, utopia e tesão, previsto para ser lançado em meados de dezem­bro pela editora Escultura e Pro­duções Editoriais, e publicado por capítulos toda segunda-feira na pá­gina cinco deste caderno.

O espírito da coisa é dar vida a algo que nunca foi visto na impren­sa goiana. Não é arrogância, muito menos pensamento truncado (ou audacioso) de um refugiado dos 11 dias de embriaguez, utopia e tesão. Não. O negócio é mais fundo, mais embaixo. Acredito que só quem es­teve lá, vivendo a fadiga e sentindo o tesão, é apto a comentar estas pa­lavras. Dispenso teses enferruja­das e caducas – e não veja tal pos­tura pela ótica da arrogância, e sim quem viveu tudo isso.

RESISTÊNCIA CONTRA A PEC 241

Nem é preciso falar que resis­tência estudantil contra as me­didas de austeridade de Michel Temer cresceram em todo o Bra­sil durante outubro de 2016. Em Goiás, não foi diferente. Prova­velmente, a maior audácia dos jovens a nível nacional se deu na capital goianiense. Descontentes com as medidas anunciadas pelo governo federal, estudantes e tra­balhadores ocuparam a Rádio UFG com a intenção de dar voz ao movimento e fazer um contra­ponto à mídia hegemônica.

A iniciativa contou com o apoio de intelectuais de várias orientações ideológicas, além de militantes que resistiram aos anos de chumbo da Ditadura Mi­litar. Mas os 11 dias de embria­guez, utopia e tesão, tempo que a Rádio Libertária ficou no ar, findaram em 9 de novembro de 2016, manhã de quarta-feira. Ofi­ciais de justiça e agentes da Po­lícia Federal (PF) entregaram na sede da emissora um documento de reintegração de posse onde fi­cava explícita a necessidade de os estudantes desocuparem o espa­ço o mais rápido possível.

Apreensiva, uma comissão de professores da Universidade Fe­deral de Goiás (UFG) foi informa­da sobre a reintegração e se diri­giu para o Lago das Rosas, no Setor Oeste, com o objetivo de garantir que nenhum excesso fosse come­tido. O documento, assinado pelo juiz Leandro Berquó Neto, listou alguns pontos que teriam sido cru­ciais na decisão de reempossar o espaço e devolvê-lo à Universida­de Federal de Goiás (UFG).

“O imóvel acima citado, bem público de sua propriedade, está ocupado por estudantes, vin­culados a diversos cursos man­tidos pela requerente, desde 29/10/2016”, escreveu o magis­trado, no primeiro item do docu­mento. Com apoio de técnicos e da diretora Márcia Boratti, simpa­tizante do Partido dos Trabalha­dores (PT) na capital goianiense, os estudantes foram acusados de ter “impedido o acesso de servi­dores ao recinto da Rádio Univer­sitária, paralisando as atividades normais administrativas, de ensi­no e pesquisa”.

REINTEGRAÇÃO DE POSSE

A emissora não chegou a ser afetada pelos ocupantes, pois eles tinham apenas duas horas de espaço na grade de programa­ção. Além disso, contavam com o apoio de técnicos. “Quando vo­cês estão aqui o serviço fica mais divertido, e é bem melhor do que os programas chatos que temos de fazer”, revelou um técnico conhe­cido pelo apelido de Coalhada.

Com experiência em rádios livres, ele sempre se dispunha a dar dicas de como pôr no ar os programas, caso não houvessem profissionais habilitados para a função ou simplesmente a cate­goria se recusasse a atender os pedidos dos estudantes. “Vocês podem baixar músicas e colocá­-las para tocar”, ensinou.

Por outro lado, a nossa pre­sença não era unanimidade en­tre os funcionários. Homem de pouco sorriso, que não se per­mitia a risadas, quem dirá facili­tar a vida de um bando de gente grilada, Gilberto sentia-se inco­modado com nossos programas. Tecia comentários contrários às ideias que saíam das incontá­veis assembleias que fazíamos por qualquer canto da rádio. “Até quando vocês vão ficar aqui, fa­zendo esse tipo de coisa?”, ques­tionava. Chegamos até a acredi­tar que o cara nos boicotava... um programa ou outro sempre ficava com o áudio zoado.

Dito isso, Berquó destacou que “o movimento, da forma como foi conduzido, já ocupando 15 uni­dades federais de educação no Estado de Goiás, não conta com justo título ou tem amparo legal, importando vulneração a garan­tias e direitos individuais dos ser­vidores, alunos e professores”. O texto disse também que as várias tentativas de negociação amigá­vel “com os manifestantes não obtiveram êxito”. Por fim, a “ocor­rência do esbulho é fato público, notório, incontroverso”.

Nenhum ativista foi identifi­cado na ocasião pelo Poder Ju­diciário goiano.

ESTUDANTES NEGAM

Em entrevista ao Diário da Ma­nhã para reportagem publicada pela jornalista Ludimila Mendon­ça em 12 de novembro de 2016, um estudante que se identificou como Bife confessou que toda a ocupação se deu por meio de ne­gociações e que não houve ne­nhuma objeção de ambas as par­tes durante todo o processo de ativismo dos estudantes. “Para nós foi um susto a reintegração, ain­da mais nesses termos, visto que a rádio funcionava normalmente”, contou o jovem, que era estudan­te de Ciências Sociais.

Sob o lema de “ocupar e trans­mitir”, os militantes organizaram debates sobre pautas que eram caras ao movimento e que não tinham tanta exposição na mí­dia, como a democratização dos meios de comunicação, que teve a presença do professor do cur­so de Geografia da UFG, Glauco Gonçalves, e da jornalista Nonô Noleto. O professor Reinaldo de Assis Pantaleão foi um dos con­vidados para falar em um espe­cial de finados sobre seus colegas de militância que desapareceram na Ditadura Militar.

Com experiência em rádio co­munitária, o jornalista Heitor Vi­lela, 24, lembrou que os assun­tos que “rendiam boas discussões nos estúdios” eram sobre temas “totalmente relevantes tanto para a luta quanto para a população em geral”. “Outros assuntos rela­cionados a movimentos sociais também tiveram espaço na Li­bertária. Às vezes a gente tinha uma função bem didática, de ex­plicar para a galera o que de fato era a PEC 241, os congelamentos de gastos, e como isso implicaria no sistema educacional. Tentáva­mos nos comunicar diretamente com o ouvinte”, relatou.

Outra marca da Libertária eram as participações ao vivo. “Tivemos até contribuições inter­nacionais, da galera de coletivos da Catalunha (região da Espanha que teve sua cultura amordaçada pela ditadura fascista de Francis­co Franco – 1934-1975), da galera do Guilhotina, que era um grupo militante de Portugal. Foi uma ex­periência incrível, que certamen­te mudou minha vida”, contou o jornalista Nasser Najar, que cho­rou quando pisou na redação da rádio e viu “todo mundo traba­lhando em prol de algo que estava além de nós”. “Foi emocionante!”

LEGADO

Atuante na Libertária, a jorna­lista, socióloga e cientista políti­ca Lays Vieira explicou que a co­municação tem um papel crucial em um movimento social. “Seja perpassando ideais, seja conquis­tando novos membros. Apesar dos acordos burocráticos que ti­veram de ser feitos, eu não tenho dúvidas de que a rádio mostrou as potencialidades da luta, mostrou que temos uma mídia que se vol­ta para defender seus interesses e, por conseguinte, manipular a in­formação”, discorre.

Vieira pontuou ainda que o legado da Rádio Libertária foi além da própria militância. “A gente sabia que a rádio UFG não era a mais ouvida de Goiás, mas os dias de Libertária foram uma ponte entre militantes e grupos não militantes, além da interação com ativistas de ou­tras localidades, em um pro­cesso que tentou estabelecer maior confluência (da pauta lo­cal para a nacional e internacio­nal), via transmissão na inter­net”, comentou.

“Foi tudo bem corrido, bem in­tenso, bem estressante. Mas, parti­cularmente, como uma jornalista que pouquíssimas vezes exerceu a profissão, lá eu me sentia de fato jornalista. De ter a prática de es­crever, apurar, cumprir prazo”, des­tacou a estudiosa. “Amizades e la­ços que geraram outros coletivos ou atuações em outros movimen­tos sociais. Foi uma troca de ex­periências, que é um tipo de edu­cação para além dos muros das instituições formais”.

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