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O silêncio de Raduan Nassar

A literatura é a experiência mais louca do escritor paulista Raduan Nassar. Após publicar dois livros na década de 1970, La­voura Arcaica (1975) e Um Copo de Cólera (1978), que são con­siderados clássicos da literatura em língua portuguesa, decidiu parar de escrever. Exatamente como Hemingway. E Dostoievs­ki. “Um texto vale quando tem cir­culação sanguínea”, disse o autor, numa rara entrevista à Folha de São Paulo, em 1995. Anos depois, na década de 1990, Nassar voltou à tona com outro livro, Menino a caminho (2017). Sem criar, entre­tanto, não deixou de pensar e re­fletir sobre assuntos que interes­sam à sociedade.

É quase clichê afirmar que seus textos são literariamente profundos. Escrito no bojo da di­tadura militar, que assolou o País de 1964 a 1985, Um Copo de Cóle­ra aborda questões que estavam em alta durante a década de 1970. A prosa, que é regida por um in­terminável fluxo de consciência, cujo livro é praticamente uma longa frase de 87 páginas, pode causar certo desconforto ao lei­tor. Crítico do governo de Michel Temer, Nassar é daquelas pessoas complexas que dificultam o en­tendimento sobre seus próprios passos. Justamente em tempos sombrios às artes, ele abandonou a literatura. Haja coragem, não?

Sim, mas o fato é que suas fa­las são sempre sedutoras. Quan­do é questionado sobre o ofício li­terário – nas poucas vezes em que concede entrevista -, ele mostra desprezo aos autores que desas­sociam experimentos estilísticos da vida. Também crê veemente­mente que um escritor não irá mudar o mundo, pois, de acor­do com ele, a prosa – ou qualquer outra forma de arte, engajada ou não – é apenas um aspecto pes­soal. “É difícil, mas não digo que dessa água não beberei”, afirmou o escritor, quando sua obra-pri­ma Um Copo de Cólera foi parar nas telas de cinema.

Bem, ainda referenciando o trampo do cara: a obra de Raduan Nassar resume-se a três livros, sendo uma novela e dois roman­ces. Na década de 1970, publicou alguns contos em jornais. E foi só. Recentemente, a Companhia das Letras lançou uma compilação de textos do escritor. E acabou por aí. Mas a pequena pro­dução literária não lhe im­pediu de conquistar o Prê­mio Camões – considerado o prêmio literário mais im­porte em língua portugue­sa. Na cerimônia, em fren­te a várias personalidades internacionais, criticou o governo de Michel Temer. Suas declarações repercu­tiram no Palácio do Planal­to. Negativamente, é claro.

Mas às favas com essa trupe que está contamina­da pelo vírus do poder... Um Copo de Cólera, livro curto e que não dá ao leitor um tempo sequer para respi­rar, é uma daquelas obras fundamentais da literatu­ra brasileira. Tudo começa quando um casal tem uma noite de sexo. Até aí tudo bem. Mas eles entram numa série de discussões, e os embatem se estendem a vá­rios assuntos. A leitura pode ser comparada a experiência de ou­vir The Doors pela primeira vez. Nassar, ao longo do texto, discu­te opressão e fascismo, suscitan­do no leitor reflexões das mais di­versas formas.

Leitor nenhum, desde que te­nha um certo repertório literá­rio, irá tecer comentários rasos acerca da obra. Aliás, o texto ofe­rece múltiplas interpretações, que servem para fomentar discussões no boteco. Mas o que deve ser sa­lientado é: ao chegar na última li­nha, a probabilidade de o leitor ficar cansado, tonto e extravasa­do é enorme. O autor, por meio de seus dois protagonistas, con­segue exprimir todo seu pensa­mento. É magnífico.

Ah, não deixe de conferir a fita Um Copo de Cólera, de 1999. Um clássico do cinema nacional, com Alexandre Borges e Júlia Lem­mertz, sob a direção de Aluizio Abranches. Para quem é apegado: o filme é fiel ao livro. Então, bora?

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