Home / Cultura

CULTURA

Box atualiza angústias e decepções de Belchior

Belchior (1946-2017) estacionou sua Mercedes c180 ano 1995 no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, e entrou num avião que lhe devolvera a condição de nômade. Corria o ano 2007, e o trovador cearense estava cansado da máquina de triturar sonhos da indústria do espetáculo. Então ele meteu o pé na estrada como aquela pedra que rolou na canção de Bob Dylan, cantor e compositor frequentemente citado em suas músicas.

Cá para nós, a postura fez com que o autor de “Como Nossos Pais” fosse ainda mais admirado pelos fãs: afinal, quem tem coragem de deixar tudo para trás e cair na estrada? A imprensa especulou em torno dos motivos que teriam levado Belchior a uma escolha tão “radical”. Dívida? Saco cheio? Mudança? Bom, talvez sim, talvez não, porém a verdade é que o próprio artista tinha dado pista numa entrevista ao Pasquim.

“Acho o seguinte: sem prática anarquista, não dá pra reformar ou transformar as sociedades. Mesmo nas democracias, existe excesso de poder. O Governo deve ser organismo de serviço e não de autoridade. O critério de manutenção do poder deve ser a competência em prestar esse serviço. Devemos lançar fora esse negócio de carisma, de visão mística da autoridade, ligada a preconceitos religiosos antigos. A visão contemporânea do poder hoje é a Pax Mercatoria, a paz dos interesses”, disse aos jornalistas Jaguar e Ricky, em bate-papo irreverente publicado em 1980.

O cancioneiro Belchior conseguiu a façanha de traduzir em versos as angústias de uma geração que sonhou ser possível a mudança do mundo apenas com as armas da paz. “Alucinação” (1976) e “Coração Selvagem” (1977) viraram objetos de culto entre os que insistem em ser movidos pelo sabor da utopia. A música é a trilha sonora que acompanha períodos históricos, e por isso ela resiste às intempéries do tempo, ganhando rejuvenescimento com edições especiais. Belchior não morreu. 

Tanto que sai agora pela Warner Music um box com dois shows raros do cantor, como “Um Show – 10 Anos de Sucesso” (1986) e “Trilhas Sonoras” (1990), mas cujo repertório conta com interpretações ao vivo de “Paralelas”, “Divina Comédia Humana”, “Velha Roupa Colorida”, “Fotografia 3x4”, entre outras. Na versão física, o especial tem textos assinados pelo jornalista e produtor musical Renato Vieira. Já a que está disponível nas plataformas de streaming conta apenas com os dois discos. 

O que, por si só, vale o tempo desligado do mundo com o auto-falante replicando a poesia de Belchior. Os dois álbuns foram gravados em estúdio, embora tenham sido captados ao vivo. Vale lembrar que, nos anos 1990, os críticos diziam que ele estava repetitivo no palco, aparentava cansaço e representava um semblante de quem não queria estar ali. Como se vê, bola fora da crítica. Belchior nunca é demais.

Os dois discos foram editados pela Continental e têm repertórios distintos que, se não se repetem sequer em uma faixa, oferecem um panorama da produção de Belchior na década de 1970 – período criativamente mais fértil da carreira dele. Com remasterização de Ricardo Garcia, “Um Show – 10 Anos de Sucessos” revela uma sonoridade mais roqueira do trovador cearense, com sintetizadores e riffs de guitarra que remetem ao rockão dos anos 1960. No streaming, talvez perca um pouco do brilho.

Em 1986, o célebre LP “Alucinação” completava uma década e no ao vivo relançado pela Warner Music há releituras diferentes das originais, como é possível perceber em “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, que, por causa de um empurrão de Elis Regina em novembro de 1975 na apresentação “Falsa Brilhante’, impulsionaram a carreira de Belchior, seja como músico ou compositor: Elis foi crucial na vida do autor anarquista. Há pouco o violão folk do estúdio. Mas em “Alucinação”, ele está marcante.

No entanto, a beleza do disco está justamente no clima mais tenso e soturno, por vezes meio rock progressivo, por vezes remetendo a Chuck Berry, o que eleva a força lírica de Belchior: sim, ele era um intelectual e via o mundo de forma racionalista. À primeira vista, as introduções podem soar estranhas, um pouco alheias ao universo de Belchior, mas depois você vai se acostumando com o que está ouvindo e tudo fica ok.

Para nossa surpresa, os arranjos não ficam datados – o que seria o normal de acontecer – e são dominados pelo tecnopop oitentista. É importante ressaltar, contudo, que há um evidente namoro entre Belchior e o reggae de Bob Marley nas faixas “Comentário a Respeito de John” (1979) e “Medo de Avião” (1979), músicas responsáveis por gerar os últimos hits do artista curiosamente no final dos anos 1970. Já “Canção de Gesta de Um Trovador Eletrônico” regressa ao rock ́n ́roll dos anos 1950.

Mesmo gravado com poucas pessoas no estúdio, entre uma canção e outra é possível escutar palmas que simulam um show tomado pelo calor do público. Registre-se que o público nunca abandonou Belchior, pois ouvi-lo cantar músicas emocionantes como “Coração Selvagem” era uma experiência única. “Gostaria de cantar para todos vocês uma canção muito especial que vem sendo a minha identidade e a de vocês também, pessoas interessadas no amor, na paz e na solidariedade da América Latina”, agradece o músico, acompanhado de um arrepiante riff de saxofone.

Muito mais do que um item para colecionador, o box “Paralelas” torna acessível discos poucos ouvidos de Belchior e atualiza sua obra aos tempos obscurantistas. Ele esteve no beijo molhado, e o beijo molhado escandalizou a estação dos caretas.

Leia também:

edição
do dia

Capa do dia

últimas
notícias

+ notícias