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Mesmo após Me Too, Woody Allen volta aos cinemas com comédia-românica alleniana

Mais um alter ego de Woody Allen, 86, entrou em crise. Desde “Annie Hall” (1977) e “Manhattan” (1979), Allen não consegue sossegar porque sabe que sua vida não é vazia, apenas não tem sentido. Para variar, está perdido, em dúvida, crise existencial rolando solta, ansiedade lhe consumindo por dentro, pensamentos sobre morte, até que apaixona-se por sua médica e envolve-se numa redoma de confusões: essa continua sendo a matéria-prima alleniana, mesmo após o movimento feminista Me Too e o escândalo de que o diretor teria molestado sua filha adotiva com Mia Farrow.

Professor de cinema aposentado, Mort Rifkin, personagem Wallace Shaw, protagonista de “Festival de Amor”, 50° filme de Allen que chegará aos cinemas nesta quinta-feira, 6, almeja se tornar um romancista respeitado, porém não dá conta de colocar no papel nenhuma palavra que esteja abaixo do mesmo patamar de Dostoievski. Ele suspeita que a esposa, uma assessora de imprensa, está de caso com um diretor francês bambambã, interpretado por Louis Garrel, e então resolve acompanhá-la numa viagem.

Em San Sebástian, cidade espanhola na qual ocorre um festival de cinema, Mort luta contra suas inseguranças. Primeiro, ele não é cego, sabe o que está acontecendo, porque sua esposa de fato flerta com Phillipe. Depois, como todo personagem criado por Woody Allen, o estresse e a hipocondria fazem com que Rifkin acredite estar com uma grave doença, indo atrás de ajuda médica em Jo Rojas, interpretada por Elena Anaya. Ele se encanta por ela, ela por ele. Enquanto dorme, sonha com clássicos do cinema.

Elena Anaya e Louis Garrel: personagens vivem paixão - Foto: Divulgação 

Mort, como se estivesse em “Oito e Meio” (1963), de Federico Fellini, aparece em cenas filmadas em preto e branco. Ao estilo “Jules Et Jim” (1962), outro clássico, mas esse dirigido pelo francês François Truffaut, disputa uma mulher com outro. Também é difícil não notar referências ao cinema surrealista de Luís Buñuel, sobretudo quando os convidados, por mais quente que esteja, não conseguem deixar um jantar – é o que fazem, por exemplo, os personagens de “O Anjo Exterminador” (1962).

Até aí, nenhuma novidade: Allen é apegado aos filmes celebrados dos mestres Orson Welles, Jean-Luc Godard e Ingmar Bergman, além dos que referencia em “O Festival de Amor”, como se fosse um pupilo admirando seus professores. Não por acaso, o americano conseguiu criar uma obra que não é pessimista na essência, e sim sartreana no aspecto de que, se a existência não tem sentido, os seres humanos somos livres para aproveitar, com mais delicadeza e gozo, nossa breve passagem pela Terra.

Sim, esse prazer nos é despertado logo no trailer de “Festival de Amor”. Seriam a inteligência e a razão diante da incerteza da vida uma forma de leveza? Ora, por que não seriam? Allen sempre se imbuiu da metafísica desde quando deu seus primeiros passos trabalhando como humorista de stand up pelas casas espalhadas por Nova Iorque. No cinema, com “Annie Hall”, que no Brasil foi traduzido como “Noivo Neurótica, Noiva Nervosa”, demonstra criatividade, com diálogos espertos e situações pitorescas.

Em uma cena, ao citar o teórico da comunicação Marshall McLuhan indevidamente, o porteiro de um cinema nova iorquino é interpelado pelo próprio McLuhan. Embora carregado de referências cabeçudas, o filme é uma comédia romântica bem simples: trata do fracasso amoroso de Alvy Singer, vivido por Woody Allen, um humorista judeu que faz psicanálise há quinze anos, e Annie Hall, personagem da atriz Diane Keaton. O grande detalhe é que Allen encontra na pia do cotidiano a torneira das piadas.

Depois, troca a leveza pela cinefilia, onde cria os belos “Interiores” (1978), “Manhattan” (1979) e “Stardust Memories” (1980), expoentes da fase de ouro alleniana. Mas para parte da crítica o melhor Woody Allen de todos é o de “Zelig” (1983). Construído como um documentário falso, talvez essa seja a obra em que o cineasta mais conseguiu extrair a essência do ser humano contemporâneo, pronto para seguir o rebanho. Em termos de estética, com toda a certeza, é um dos clássicos do cineasta americano.

Ainda na década de 1980, outra obra prima em que uma frustrada interpretada por Mia Farrow vai durante às noites ao cinema para rever um filme que lhe conforta a existência e torna a realidade mais palatável. Para ela, o mundo é chato, precisamos do cinema para termos condições de seguir em frente e termos um instrumento para encontrar refúgio. Ou seja, é uma declaração de amor a essa arte – que Allen, guardados os devidos escândalos, tão bem representou a partir de filmes cultuados.

Rede Globo > filmes - Corujão: 'Vicky Cristina Barcelona' tem Cruz,  Johansson e Bardem
Diva do cinema espanhol, Penepole Cruz trabalhou com Woody Allen em 'Vicky Cristina Barcelona', filme lançado em 2008

Nos últimos anos, sem conseguir mais filmar nos Estados Unidos por falta de grana, encontrou refúgio na Europa: “Vicky Cristina Barcelona” (2008), “Meia-Noite em Paris” (2011), “Para Roma, com Amor” (2012) e “Festival de Amor” são dessa última fase. Todos têm o mesmo ponto de partida. São bons. Têm diálogos espertos. Nesse período, no primeiro filme, trabalhou com a diva espanhola Penélope Cruz e seu então marido Javier Bardem.

De fato, para esse Woody Allen que se voltou ao Velho Continente, o trabalho se tornou um lugar no qual sabe que tem o conforto do refúgio, já que sua carreira até então brilhante caiu num limbo assim que a ex-esposa Mia Farrow lhe acusou de ter abusado sexualmente da filha adotiva deles, Dylan, em 1992, quando ela ainda era adolescente. Tempos depois, revelou-se que ele tinha uma história com Soon-Yi, filha adotiva de Farrow. Ele ainda é casado com ela. São pais de dois filhos... adotivos!

Se para alguns Woody Allen é digno de ocupar o mesmo lugar reservado a Fellini, Truffaut, Welles, Buñuel e Bergman, para outros o diretor responsável pelas obras-primas “Annie Hall” e “Manhattan” merece ter seu nome tirado da história do cinema. Ainda que tenha sido inocentado em duas investigações independentes, perdeu um contrato com a Amazon, que quase impediu o lançamento de seu filme “Um Dia de Chuva em Nova Iorque”. Apenas dois anos depois a obra chegou à tela grande nos EUA.

Persona non grata em Hollywood, o cineasta foi cancelado ainda mais. A editora que iria publicar “A Propósito do Nada”, seu livro de memórias, deu um passo para atrás após funcionários protestarem e desistira do negócio. As acusações de abuso viraram o filme “Allen vs. Farrow”, documentário produzido por Amy Herdy e exibido na HBO. Teria Mia Farrow enlouquecido como em “Bebê de Rosemary”, filme dirigido por Roman Polanski, outro cineasta cancelado por abuso, mas esse condenado?

Jornalisticamente, o documentário é difícil de ser levado a sério, pois se utiliza de recursos comuns aos roteiros de ficção, com ganchos e pistas falsas, um horror. No entanto, como diz o escritor Marcelo Rubens Paiva, temos o outro lado que faltava nessa história. “E é terrível”, afirmou ele. Nem me fale, meu caro, nem me fale!

Festival de Amor

Diretor: Woody Allen

Gênero: Comédia-Romântica

Disponível nos cinemas em janeiro

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