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OPINIÃO

Rapsódia escatológica

Ronaldo Cagiano ,Especial para Opinião Pública

Autor de vasta e premiada obra, Nelson de Oliveira transita por todos os gêneros, numa performance criativa que o particulariza no cenário da literatura brasileira como uma das carreiras mais prolíficas e talentosas de sua geração. Nos últimos anos, na esteira de sua irrequieta versatilidade, seu domicílio estético migrou para Luiz Bras, heterônimo com o qual se apresenta nesse novo patamar literário, abrindo espaço para outros olhares, também instigantes e cirúrgicos sobre o mundo e o quotidiano que o cercam, convivendo ainda com Téo Adorno e Valério Oliveira, signatários de uma usina efervescente de construções artísticas do mesmo quilate do seu criador.

Da ficção à poesia, do ensaio à crítica, Nelson/Luiz oferece ao leitor em sua oficina criativa um caleidoscópio de opções, incursionando também pela ficção científica, vertente na qual o autor vem laborando com rigor e talento, resgatando um gênero até então menoscabado pela crítica. Investindo na publicação de obras coletivas (como “Hiperconexões: universo expandido”); ou em trabalhos solo, a exemplo do recente “Distrito Federal” (Ed. Patuá, SP, 2014, 280 pgs, R$ 45), romance que vem – justamente nesse período em que o Brasil vive uma crise política e de escalonamento de valores éticos com uma enxurrada de denúncias de corrupção – de forma alegórica, sarcástica e bem humorada, fazer uma crítica da banalização do poder, a partir de seu ícone principal, a capital da República, sede dos três (podres) poderes e de uma esplanada de vilezas, onde o mar de lama ameaça as instituições e nos humilha perante o mundo.

“Distrito Federal” coloca na ordem do dia, com as tintas da supra-realidade, a sujeira generalizada, narrativa em que homem e máquina, consciência e virtualidade, são elementos que compõem uma linguagem devassadora desse momento. A obra, embora possa ser classificada como ficção científica, na verdade transcende a mera rotulação de gênero para inscrever-se como recurso literário multifacético, em que todas as possibilidades da linguagem são utilizadas para escandir o universo político em decomposição e realizar uma espécie de catarse coletiva. Nesse processo de vingança cibernética contra o vírus real da corrupção, encontra-se um personagem ao qual se atribuem poderes extraordinários para detectar o mínimo sinal de bandidagem nos escaninhos do poder, aferir desvios nos labirintos das instituições. Simulação, na era da tecnologia e da velocidade dos sistemas computadorizados, de uma versão atualizada e megabitizada do justiceiro (fusão de homem e máquina), que, à moda de um superpotente Lampião nanotecnologicamente criado, vai com sua tropa anti-virótica embrenhar-se na selva do poder para destronar o mal que tanto avassala a vida política nacional, um exterminador de corruptos que leva ao paroxismo sua conspiração profilática.

Criado à luz de uma concepção ultrarracional – porque a realidade que aí está só pode ser enfrentada num plano extremamente sofisticado de imaginação – esse protagonista super poderoso, filho da inteligência artificial e das próteses, desencadeando uma “Operação Lava Jato” ciborguiana, dialogando com personagens reais e lendários da vida e da história – vai rastreando o presente com seus guantes semióticos, extraindo do aluvião da roubalheira as pérolas do propinoduto nacional, e num processo radical de extinção, evitar um futuro com menos sensação de passado e impor novos padrões de vida, relacionamento e trato da coisa pública.

Nesse jogo entre ficção e realidade, fantasia e verdade, razão e subjetividade, o autor pretendeu, em chave rapsódica e prosa de fôlego, detectar o mal da classe política. A pulsão crítica impiedosa, em que tensão e drama, às vezes mitigados pelo nonsense, ganham status de denúncia, mas sem panfletarismo ou ideologia, expõem os mecanismos que tutelam e viciam o homem público. Destaca-se a habilidade do autor no tratamento de uma questão tão emergente e doída no inconsciente coletivo, pois não deixa pistas para inverossimilhança: tudo parece real na virtualidade utilizada no combate ao mundo cão da política suja.

Só mesmo a ficção científica para explicar (ou escandir) a decadência por que passam o Brasil e seu povo, a nação e seus políticos. E ninguém menos que Luiz Bras para refletir o sentimento de estranhamento e inquietação que vicejam no seio da sociedade brasileira e desconstruir, com uma obra impactante e sem símiles na nossa recente e malfadada história. “Distrito Federal” metaforiza a escatologia e o acento macunaímico de um País cujas instituições vivem em estado terminal, a ética experimenta um processo falimentar e a sociedade se contorce em espasmos diante de uma classe política sem heróis e sem caráter.

Nessa narrativa que incorpora uma visão niilista e perturbadora do caos nacional, Luiz Bras coloca o leitor “vis à vis” com nossos genéticos dilemas pessoais, sociais, históricos e políticos. Essa história instigante é também uma oportunidade para a implosão dos temp(l)os das mentiras que corroem todos os poderes, desde nossa infausta “descoberta” pelos portugueses, passando pelas crises do Império, da República; pela vergonha da escravidão e pelo arbítrio das ditaduras civil e militar, pelo suicídio de Vargas e o impeachment de Collor, e quem sabe, numa vocação de Fênix, esse País possa renascer dos próprios escombros.

(Ronaldo Cagiano, escritor, reside em São Paulo)

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