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OPINIÃO

Teclas de Deus

Doracino Naves, Especial para Diário da Manhã

Ela já esteve nos braços de Marlon Brando; sentiu as baforadas da piteira de Tenesse Williams, astro da literatura, dos palcos e do cinema. Nelson Rodrigues deixou suas digitais no corpo da discreta musa. Num triscar de dedos a estrela dessa crônica começa a falar. Ela gosta que as suas partes secretas sejam tocadas com determinação. Clarice Lispector, sua amiga íntima, depois de longa conversa sussurrou desiludida: “Eu escrevo sem esperança de que o que escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada...” Millôr Fernandes confessou, sem pudor, depois de tanger suas curvas sinuosas: “Escrevo porque escrevo, se me pagassem eu só falava.”

Essa falastrona passou noites na companhia de poetas, jornalistas e escritores. Certa feita dormiu em cima de um telhado na Praça São Pedro, com um repórter do Time-Life; enquanto esperavam o anúncio do novo papa. Submissa, aceita ficar em qualquer lugar no mundo, mas quando é provocada grita. E diz cada palavrão! Em momentos de candura louva a Deus na difícil tarefa de interpretar o pensamento do homem.

Despudorada ou santa o seu fim chegou com as novidades do novo milênio. Veio ao mundo depois do pincel, da pena e do lápis. Seus neurônios passaram a vida dando saltos na frente dos homens e das mulheres escritores; em profunda e sincera comunhão de sentimentos e opiniões. Atraente, de curvas sinuosas, chama a atenção dos seus amantes fiéis que não a abandona por nenhum computador de mesa, laptop ou IPad. Só os perfeccionistas arriscam trabalhar com ela. Se alguém erra terá de se humilhar e, indiscutível, confessar o erro marcado numa imaculável folha de papel. Ou joga no lixo o que escreveu ou apaga o que foi escrito. Quem é essa musa despudorada? Estou falando da máquina de escrever que encerrou a sua ventura na terra; a última fábrica, na Índia, foi fechada em 2012.

É melancólico ver o fim da linha de um objeto obediente e submisso ao ser humano. Suas teclas tocam a fita rubro-negra ao impulso dos dedos; a alavanca se move de um lado ao outro na incansável busca do texto preciso; ora hesitante, ora com a certeza majestosa dos deuses. O som metálico das teclas vararam milhões de noites em busca do texto ideal. Das grandes invenções do homem, a máquina de escrever é a que mais fielmente traduziu sonhos e desejos; nas peças de teatro, roteiros de cinema, literatura, cartas de amor, letras de música e hinos, recados mal criados, relatórios técnicos ou nas fórmulas de invenções que mudaram o rumo das coisas.

Desbancada das editorias dos jornais a máquina de escrever se transforma, sem dó nem piedade, em peça de museu. Menos nas prisões dos Estados Unidos onde é proibido usar o computador. Lá, numa população de mais de dois milhões de detentos a máquina de escrever é útil. Porque a máquina de escrever só tem uma função: escrever. Assim, o presidiário não é tentado a usar a internet ou responder e-mails.

Há um sentimento voyeur, à Alfred Hitchcock, diretor e roteirista de Janela Indiscreta, ao abrir a caixa da máquina de escrever portátil. Curvas, ponto G, o requebrado rítmico das teclas que, ao serem tocadas, revelam a palavra secreta guardada no Spirit. A mobilidade dessa máquina itinerante escreveu o mundo de guerra e paz; foi a ferramenta de jornalistas e escritores para contar as atrocidades do front.

Tenho a esperança de que o que escrevo ajude a decifrar a alma dos objetos e cidades. Quando for ao encontro da eternidade serei guiado pelas teclas de Deus que escreve o destino de todos num imenso e inefável livro.

(Doracino Naves, jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no

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