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OPINIÃO

A força dos precedentes no novo Código de Processo Civil e a revolução na atuação forense

O Código de Processo Civil de 16 de março de 2015 se preocupou com um dos grandes problemas atuais do Poder Judiciário: a massificação de demandas. Com efeito, grande parte das demandas levadas à análise dos mais diversos órgãos jurisdicionais do País podem ser taxadas de semelhantes. Não sem razão, tendo em vista que as pessoas jurídicas de direito público em geral e as grandes pessoas jurídicas de direito privados são demandadas em juízo a todo instante. Dessa forma, há uma multiplicação natural de demandas relacionadas às questões homogêneas, como, por exemplo, demandas consumeristas, relacionadas a concursos públicos, benefícios previdenciários, gratificações de servidores públicos e diversos outros assuntos que com frequência chegam ao crivo do Judiciário brasileiro.

Com tamanha multiplicidade de demandas e de órgãos jurisdicionais espalhados pelo território nacional, é também recorrente que existam decisões conflitantes sobre matérias análogas. Tais decisões atentam contra valores básicos garantidos constitucionalmente: a segurança jurídica e a isonomia. Afinal, quando o cidadão busca o Poder Judiciário e vê sua pretensão ser rejeitada, a sua insatisfação é potencializada ao ter notícia de que outra(s) pessoa(s) em situação absolutamente análoga obteve(obtiveram) êxito. Isso coloca o Poder Judiciário em profundo descrédito.

Atento a isso, o novo Código de Processo Civil cria mecanismos de pacificação social em massa e os confere força vinculante, a saber: (i) os Recursos Especiais e Extraordinários Repetitivos – RR (art. 1036 e s/s); (ii) o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR (art. 976 e s/s); e (iii) os Incidente de Assunção de Competência – IAC (art. 947 e s/s). Além desses, o código fortalece outros institutos com a mesma finalidade já conhecidos no ordenamento jurídico, como as decisões do Supremo Tribunal Federal em Ações de Controle de Constitucionalidade, as súmulas vinculantes e as súmulas convencionais.

O objetivo de todos esses institutos é basicamente um só: definir teses jurídicas para aplicação em casos semelhantes, facilitando e uniformizando o julgamento desses casos, criando o que chamaremos, por conveniência, de precedentes vinculantes.

Antes do CPC de 2015, apenas as decisões do STF em ações de controle de constitucionalidade e as súmulas vinculantes eram, de fato, vinculantes para os demais órgãos jurisdicionais. Dando um passo à frente no tratamento dos precedentes, o CPC de 2015 determina em seu artigo 926 que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, primando justamente pela isonomia e segurança jurídica dos jurisdicionados. Logo à frente, no artigo 927, o Código, de forma imperativa, dispõe que os juízes e tribunais “observarão” os já citados instrumentos de pacificação social em massa (RR’s, IRDR’s, IAC’s, súmulas vinculantes etc.), ampliando o rol de decisões que vinculam os órgãos jurisdicionais, reforçando a ideia de vinculação dos precedentes.

E a força dos precedentes é tanta que reflete em diversos outros institutos processuais, a saber: (i) a tutela de evidência será deferida quando as questões de fato forem comprovadas documentalmente e houver precedente vinculante sobre o caso (art. 311, II); (ii) haverá improcedência liminar do pedido quando o autor deduzir em juízo pretensão contrária à precedente vinculante; (iii) Diante de precedente vinculante, poderá o relator monocraticamente negar ou dar (nesse caso, após a oitiva da contra parte) provimento a recursos. Não bastasse esses exemplos, o novo código autoriza ainda o ajuizamento de reclamação contra as decisões que desrespeitem os precedentes vinculantes (art. 988, IV).

Ou seja, o novo código em várias passagens deixa claro que os precedentes judiciais surgidos dos instrumentos de pacificação social em massa não são apenas orientadores de julgamentos, mas verdadeiramente vinculam os órgãos jurisdicionais à aplicação da tese firmada. A jurisprudência ganha um papel de destaque como fonte do direito.

Esse novo regime de precedentes vinculantes introduzido pelo Código de Processo Civil de 2015 aproxima o sistema processual brasileiro do sistema do common law, onde desde sempre os precedentes tiveram grande relevância para o ordenamento jurídico como fonte primária do direito.

Consequência disso é que os operadores do direito deverão se adaptar a algumas técnicas de argumentação jurídica e de julgamento de casos do modelo common law. Explica-se.

De acordo com o §1º, incisos V e VI do artigo 489 do CPC de 2015, não se considera fundamentada a decisão que se limitar a invocar precedente vinculante sem identificar “seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”, ou deixar de aplicar o precedente vinculante “sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

O precedente é composto de uma ratio decidendi, que nada mais é que o(s) fundamento(s) determinante(s) de uma decisão judicial apto(s) a servir(em) como diretriz para o julgamento de casos análogos. Existindo um precedente vinculante em determinado caso hipotético, será inútil ao intérprete fundamentar seus pedidos no direito positivo. Caberá a ele realizar um cotejo analítico entre o caso em análise e os fundamentos determinantes do precedente vinculante.

É seguro dizer, doravante, que o ordenamento jurídico brasileiro importou do common law de maneira expressa a técnica de confronto, interpretação e aplicação do precedente denominada distinguishing (distinção), e também as técnicas de superação do precedente denominadas overruling e overriding (superação).

O distinguishing é, a um só tempo, um método de comparação entre o caso concreto e o paradigma e, o resultado desse confronto quando se concluir haver entre eles uma diferença. Em outras palavras, o intérprete sempre fará o distinguishing-método quando estiver diante de um precedente vinculante (especialmente o magistrado, sob pena de não ser considerada fundamentada sua decisão), mas o distinguishing-resultado somente será aplicado quando a ratio decidendi do precedente não se encaixar ao caso concreto, em razão de alguma peculiaridade contida nele.

O overruling é a técnica utilizada para retirar a força vinculante de um precedente, substituindo-o por outro precedente. Podem existir várias razões para que um precedente vinculante seja overruled (superado), as mais comuns sendo a evolução natural da sociedade tornando obsoleto o precedente, a superveniência de legislação que importe automaticamente na inutilidade do precedente, ou até mesmo a própria evolução do raciocínio jurídico que leve à conclusão de que aquele precedente não é a melhor interpretação do direito. O overriding também é técnica de superação, no entanto ela é mais sutil, pois supera o precedente apenas em parte, ou então apenas o adapta a uma nova situação.

A prática jurídica brasileira ganha uma nova configuração. As petições e as decisões judiciais, ao invés de se fundamentar em dispositivos de lei, deverão destrinchar o precedente vinculante para extrair seus fundamentos determinantes e aplicá-los ao caso, demonstrar a distinção do caso, ou até mesmo a superação do entendimento.

Dessa forma, tende a cair em desuso a prática tão comum de simplesmente colacionar ementas de julgados a fim de conferir sustentabilidade à tese jurídica, pois que os fundamentos determinantes de uma decisão somente podem ser identificados através de seu inteiro teor. As técnicas de distinguishing, overruling e overriding somente podem ser efetivamente aplicadas sobre os fundamentos da decisão, e não simplesmente a ementa do julgamento.

Induvidosamente, os precedentes judiciais ganham lugar de extremo destaque como fonte do direito no nosso ordenamento jurídico. Além disso, a tradução jurídica nacional, tão acostumada a expressões em latim oriundas do sistema jurídico romano-germânico, terá agora que se acostumar também com expressões inglesas/norte-americanas oriundas do sistema jurídico anglo-saxão. Caberá aos operadores do direito se adaptar a essas mudanças a fim de fundamentar corretamente as peças jurídicas que envolvam precedentes vinculantes.

 (Eurípedes José de Souza Junior, advogado do escritório GMPR – Gonçalves, Macedo, Paiva & Rassi Advogados)

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