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OPINIÃO

A tropa ubíqua de Adail Santana

Desde 65, labuto no serviço público, tendo passado por chefias, diretorias, burocracia simples, chegando ao topo na magistratura de carreira no Estado; enfim, já fui de tudo um pouco como gente que trabalha pro governo. Assim, mais do que ninguém conheço as manias do funcionário, que usa de mil artifícios para burlar o trabalho. Desde as doenças na família, as mortes providenciais de parentes e o clássico papel do paletó na cadeira, tudo isto é motivo para o nosso barnabé enforcar o serviço ou fugir dele após bater o ponto. Há funcionários (isto, na capital, pois no interior todo mundo conhece todo mundo) que não tem mais pai, mãe, tio, avô e outros achegados, que já foram enterrados para justificar ausências.  Mas o paletó, realmente, é utilíssima indumentária, não como vestimenta, mas para marcar a “presença” do funcionário no seu local de trabalho. Com o paletó ali no encosto da cadeira, está garantida a desculpa para as fugas do serviço. Quando alguém pergunta pelo funcionário, respondem naturalmente:

– Está por aí... O paletó dele está na cadeira.

Com o paletó na cadeira de trabalho, está garantido o cineminha, uma fugidinha e até um eventual “bico” fora.

A presença do dirigente da repartição modifica totalmente o ambiente de trabalho: na frente do chefe, o funcionário quer mostrar-se eficiente, trabalhador, ativo e útil. Com o chefe “na casa”, ele está sempre com um processo sendo compulsado, um telefonema, para que a imagem seja a de quem está trabalhando. Diante de qualquer viagenzinha do superior, a repartição esvazia-se, pois ninguém fiscaliza ninguém (e quem não precisa sair de vez em quando?). É flagrante o contraste da repartição com o chefe e sem ele.

Mas esse negócio de fazer fachada não é treita privativa de servidor público de cidade grande.  Meu finado amigo Adail Santana, prefeito da vetusta tocantinense Natividade, que, sendo um dos políticos mais hábeis dali do interior, aprontou uma de deixar de queixo caído o mais finório dos funcionários vivaldinos da capital.

No tempo de Juca Ludovico, inexistindo estradas e veículos em todos os lugares, o escoamento da produção era feito por tropas. Havia tropas de 20, 30 jumentos, que vinham trazer arroz, feijão, milho, penas de ema, couro de veado e de gato-do-mato (não existia Ibama) e levar sal, café, querosene, medicamentos, etc. E os animais cargueiros entravam na rua chacoalhando as bruacas e tilintando os chocalhos, dando um ar de progresso à cidadezinha ali do nosso interior.

Em Natividade, que ainda era Goiás, a prefeitura mandou fazer um campo-de-avião a um quarto de distância da rua, onde pousava o teco-teco do Estado nas épocas de caçar votos ou de visita de alguma grandoria do governo.  Aliás, o campinho de pouso até teve seus dias de glória, quando a Cruzeiro do Sul incluiu Natividade na rota Goiânia/Belém por muito tempo. Mas, acabando-se o “voo da fome”, voltou o campinho à utilidade de sempre.

Um dia, o prefeito Adail recebeu a notícia de que o governador iria passar em Natividade, onde daria uma volta em toda a cidade: iria à prefeitura, visitaria obras, hospedando-se na casa do prefeito, onde almoçaria, retornando à tardezinha.

Mandou arrancar as malvas da praça, ciscar o lixo das ruas, fazer bandeirolas para enfeitar as esquinas onde passaria Sua Excelência e até traçou um programa para dosar adequadamente a curta, mas preciosa, permanência da grande autoridade, cuja visita poderia render-lhe prestígio... e verbas.

O homem chegou, ficando muito bem impressionado com a cidade. Quando estava na varanda da casa do prefeito, viu passar uma enorme tropa tilintando choca-lhos e estalando tacas para dobrar a primeira esquina adiante. O prefeito explicou que era o meio de escoamento da produção e que naquele interior o progresso era medido pelo número de tropas que entravam e saíam.

Ao chegar à prefeitura, a comitiva oficial foi interrompida por outra tropa, que durante alguns minutos tomou conta da rua, tangida pelos arreeiros, ante os olhares satisfeitos do prefeito e do governador, este já impressionado, a ponto de perguntar:

– Prefeito, esse movimento é constante aqui?

O prefeito, com um ar de naturalidade e até descaso, respondeu:

– Não, Excelência, agora está pequeno. O movimento maior é na safra. Pena que não tenhamos estradas e recursos para melhorar a região.

E durante o dia, o governador viu passarem tropas à sua frente, pois em todas as esquinas por onde passava via, invariavelmente, uma tropa.

E retornou a Goiânia com a melhor das impressões da próspera Natividade, disposto a prestigiar o diligente prefeito e ajudar a região com os melhoramentos possíveis.

Mal sabia o governador que o astuto prefeito, macaco velho na política, contratara uma tropa sem carga nenhuma, para, durante a estada do homão, cruzar a cidade o dia inteiro, sempre nos locais onde a comitiva estivesse, para dar a impressão de muitas.

E, se não me falha a memória, no pleito seguinte, Adail chegou à Assembleia, mostrando que, para quem tem cabeça e esperteza, até bruaca vazia pode ser preciosa para subir na política, sem apelar para esquemas e golpes contra o Erário.

Mas, apesar de esperto, Adail sempre foi honrado, e morreu pobre, deixando uma lição pra esses pilantras “mensaleiros” e “petroleiros” que, blindados pelo governo, só envergonham a gente.

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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