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OPINIÃO

Futebol e o paraíso perdido

A elegância foi a marca de um esporte cativante. Por uma bola bem sucedida, duas orquestras tentam ecoar as melhores notas. Antes do futebol, a bola já cativava. Um chute sempre alegrou o homem. A bola convidava a chutar, porém desorganizadamente. Os garotos viviam a chutar bolas, feitas não sei de quê, uns sobre os outros, ao invés de rezar e alcançar a graça. Por isso Santo Ambrósio e Agostinho os admoestavam. Este o fez expressamente em “A Cidade de Deus”. Era pecado, mas o instinto elementar dos homens desafiava a fé que o queria conter.

Todos os continentes, desde remotas eras, esboçaram o futebol, o engenhoso périplo de lançar uma bola às redes. A estética, contudo, não se aperfeiçoava por falta de regras. Estas foram sendo paulatinamente criadas e se consideram consolidadas na Inglaterra em 26 de outubro de 1863. O xadrez do intelecto foi transportado para os retângulos verdes, com a distinção do acoplamento entre a inteligência, o talento e a força física. As mãos foram afastadas. Para ser belo, os pés, inusuais. As mãos sempre dão um jeitinho.

O esporte bretão, regrado e elegante, ganhou boa parte do mundo ocidental. Criou emocionantes peças teatrais das modorrentas tardes domingueiras, das quais as plateias participavam. Especialmente no Brasil. O caleidoscópio brasileiro das raças o abraçou, logo, sob inúmeros rituais. A começar dos saudosismos das terras ancestrais, sedentos de memórias das origens, sobretudo na incipiente São Paulo, onde afagavam as lembranças e constituíam bairros típicos. E o emblemático Rio, nossa grande capital. Daí, até os dias atuais, o futebol domina o lazer em todos os sítios nacionais, desde grandes metrópoles até os mais longínquos grotões.

Engalanavam-se homens e mulheres para os espetáculos das tardes dominicais. A garridice era o que competia nas plateias. Desencontros e ombradas físicas, nem pensar; que vencesse o melhor, ainda que para as tristezas e alegrias da semana, como todas as coisas da vida, para serem comentadas, curtidas e gozadas no cotidiano, da feira ao fórum.

Como dito, o futebol instintivo está na origem de todas as regras. Evoluiu do inorgânico para o organizado, a exemplo da natureza, por meio de regras severas e eficazes. Leis aplicadas de imediato, sem recursos, liberdades provisórias, trânsito em julgado. Daí sua magia do correto e das injustiças, estas lamentos destinados a testar a resistência dos injustiçados.

Até que o vil metal entrou em cena e demoliu sua nobreza. Sabe-se que hoje é um dos maiores negócios do globo. Sem controle judiciário. Fazem-se bilionários, milionários e corsários de todos os tipos. Depois de duas hecatombes mundiais, em que o homem demonstrou suas qualidades animalescas, que perduram até hoje, sob invólucros diversos.

Países desenvolvidos e subdesenvolvidos mostraram as torcidas e suas garras monstruosas. O maravilhoso teatro foi convertido em pavorosa amostragem da comédia divina, em momentos que preferimos esquecer. Felizmente, muitos não morreram, apenas ficaram mutilados, conforme a ironia de Drummond. Famílias já não se animam a ir aos estádios. Nem mesmo jovens e homens guiados pelo bom senso. As hordas de criminosos, que enlameiam o planeta neste século iniciante, relembram as agruras do anterior, sob a falência dos Estados e seus contratos sociais.

Buenos Aires foi a capital da cultura no começo do breve século XX. Suas tertúlias replicavam as europeias. Jorge Luis Borges cantou as milongas, o “gaúcho”, o Sur e a “Boca”. A Boca diuturna dos tangos, dos sapatos brancos, dos espertos, dos otários, das mulheres irresistíveis, da música ininterrupta. Em seu entorno, o lendário Boca Juniors, que nos deu a irreverância e a genialidade de Maradona, artífice dos pés e, também, de uma “invisible hand”, que deu uma copa do mundo para os hermanos do além Prata. A magia da Boca e de seu time não tinha paralelos no mundo. Patrimônio da humanidade ou, pelo menos, dos humanos de segunda a segunda, de janeiro a janeiro.

Até ontem, invadida sordidamente por marginais que a tudo contaminam, ao lançar gases lesionantes sobre os jogadores do River Plate. Não chores por mim, Argentina, você também tem razões de sobra para os tangos tristes. A expulsão da Copa Libertadores do Boca era o mínimo que se podia esperar. Afinal, sem regras, que a cada dia se esgarçam, ao lado das mutretas, para nossa infinita tristeza, não há estética, porque não há ética, em tudo e no futebol. Assim, compreendemos o direito, sem o qual não haveria arte, segundo uma lenda, dificilmente compreendida, de uma antiga tribo chinesa.

(Amadeu Garrido de Paula, advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário e Coletivo do Trabalho)

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