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OPINIÃO

Incongruências da lei

A gente, que aplicou a lei por muitos anos, acaba por dar razão ao povo, quando ele acha absurdos no nosso ordenamento jurídico.

Ninguém precisa dizer que temos um Código Penal inteiramente desatualizado, pois o mundo evoluiu, os costumes evoluíram, mas a lei continua a mesma, e as novas leis que surgem vêm apenas maquiadas. Hoje, com a imprensa e a internet, estudos provam que uma criança de sete anos armazena mais informações do que um imperador romano no auge do Império.

O excesso de leis não quer dizer que estas sejam corretas. Quanto mais leis tem o país, menos organização. Nunca se legislou tanto em matéria criminal no Brasil quanto no período pós-Constituição de 1988. O nosso Código Penal foi alterado nada menos que 156 vezes desde sua criação, mas em nada atenuou a criminalidade. Está saindo a qualquer momento o livro O Populismo Penal Legislativo, do jurista Luiz Flávio Gomes, que fará uma lúcida radiografia desta situação.

E nesta verdadeira parafernália de leis no Brasil, não raro encontramos conflitos explícitos.

Se alguém causa lesão corporal, ocasionando, por exemplo, fratura nos dedos, o art. 129 do Código Penal Brasileiro prevê uma pena de três meses a um ano, mas se alguém, tentando subtrair com violência uma carteira, agride uma pessoa, sem causar-lhe qualquer lesão, pode pegar uma pena de 4 anos a 10 anos (art. 157 do CPB). É a priorização do patrimônio, em detrimento da incolumidade física.

Às vezes, a lei dá tratamento diverso a fatos idênticos. E podemos exemplificar: aquele que se apropria de um valor alheio, como no caso de apropriação indébita, pode ser apenado com 1 a 4 anos de cadeia; mesmo que esta pessoa venha a restituir espontaneamente o valor retido e a vítima aceite, ainda assim será processada. Mas quando o Estado for a vítima, tal não acontece: se um empresário não recolhe os impostos embutidos no preço da mercadoria, vindo a apropriar-se desse valor, não será processado se pagar antes de ser oferecida a denúncia.

Um outro absurdo é o chamado “duplo grau de jurisdição”, que significa: a sentença em que a Fazenda Pública for sucumbente, é obrigatório o reexame da decisão do juiz pelo tribunal, sob pena de não valer a sentença. Mesmo que a União, o Estado ou o Município não queiram recorrer e desejem pagar ao vencedor da demanda, a lei não deixa, pois o processo deverá ser obrigatoriamente submetido ao duplo grau de jurisdição. Se o perdedor, no entanto, for o particular...

Muitos se perguntam: por que nos Estados Unidos a decisão (e, em última análise, a lei) é cumprida. É que o processo civil americano tem o chamado “command of courts”, não havendo processo de execução, pois a decisão tem cumprimento imediato. Aqui no Brasil, é notório que o poder público não cumpre decisões. Houve até um advogado-geral da União que certa época recomendou que os órgãos públicos não cumprissem decisões da Justiça, em nome da governabilidade. Hoje todo mundo o conhece: o ministro do STF Gilmar Mendes.

Abro um parêntese para deixar uma pergunta: e por que os condenados à morte demoram tanto a ser executados? É porque, no caso de eventual erro judiciário, não há como se reparar, visto que, com a tecnologia de hoje, com perícias e exames de DNA avançados, não raro um condenado é considerado inocente.

Eu estava ainda na adolescência quando se desenrolava na Califórnia o drama de Caryl Chessman, conhecido pela alcunha de “O bandido da luz vermelha”, acusado de 17 crimes, como assaltos, sequestros e estupros, e condenado à morte na câmara de gás, por provas circunstanciais; Chessman, famoso na década de 50, ficou anos no “corredor da morte”, e nesse período dispensou advogado e, estudando Direito, fez sua própria defesa. Na cadeia escreveu, obras autobiograficas 2455 - Cela da morte, A lei quer que eu morra e A face cruel da Justiça e um romance: O garoto era um assassino. Seus livros correram o mundo inteiro, provocando diversos sentimentos, desde pena até raiva extrema. Morreu na prisão de San Quentin, em uma câmara de gás em 1960, mas sua luta fez com que o Estado da Califórnia, assim como o resto do mundo, refletissem sobre a pena de morte. Mas em se falando em processo penal, todos os países, à exceção da China e talvez dos países islâmicos fundamentalistas (onde o processo é sumário), o prazo para execução é demorado (exemplo recente é a Indonésia). Fecho o parêntese. E voltemos ao Brasil.

Está se tornando coqueluche o assunto da redução da maioridade penal, que deverá ser rejeitada, pois além de ser cláusula constitucional pétrea, iria dar salvo conduto ao hoje menor para dirigir, beber e prostituir-se além abarrotar nosso já falido sistema carcerário.

Existem alguns artigos no Código Penal que dão o que pensar:

O art. 229 considera crime: “Manter casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fins libidinosos...” – Pergunto: e os motéis?

O art. 234 segue da mesma forma, tipificando como crime “Fazer, importar, expor, adquirir ou ter sob sua guarda, para fins de comércio, distribuição ou exposição, escrito, desenho, estampa ou qualquer objeto obsceno...” – Pergunto: o que dizer das revistas ditas masculinas? E dos filmes pornôs? Os defensores da lei argumentam que o artigo 234 refere-se apenas a teatro e rádio, pois na época do Código não havia TV, e o cinema era bastante inocente. Mas os costumes evoluíram...

O Decreto nº 22.626/33 (Lei da Usura) pune quem estipular juros superiores à taxa legal. O art. 192, § 3º, da Constituição de 1988 limitava os juros legais a 12% ao ano. Mas os bancos e instituições financeiras não concordaram.

E o resultado é que foi derrubado esse parágrafo pela Emenda Constitucional nº 40, e o STF editou duas súmulas (Súmula Vinculante 7 e Súmula 648) declarando que o dispositivo não era autoaplicável, Fez o que os banqueiros queriam: não lhes seria justo cobrar por ano quase o que o cheque especial e o cartão de crédito nos cobram por mês.

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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