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O envelhecimento na verve crítica de Rachel de Queiroz

Em seu livro de ‘memórias’ – embora ela negue este gênero literário e até questiona “será literário mesmo?” – escrito por meio de relatos e entrevistas, mas compilado pela sua irmã Maria Luiza de Queiroz, intitulado Tantos Anos, Rachel de Queiroz fala sobre a velhice: “Falta só um ano e seis meses para fazer oitenta. Essa coisa me injuria muito. Fazer oitenta anos eu acho extremamente desagradável. Pode ser que, depois, eu me acostume. Mas não creio: considero envelhecer uma ideia péssima. Alias, pensei que seria pior. Isso é, do lado físico. Pensei que a incapacidade física viesse mais depressa e fosse maior. Sempre fui muito preguiçosa. Talvez isso ajude.”

Quem não conhece Rachel de Queiroz a considera, por meio do trecho citado, uma pessoa pessimista diante da vida, e até mesmo preconceituosa. Muito pelo contrário, ela foi uma das maiores críticas de como a sociedade encara a velhice em diferentes aspectos. Na época em que escreveu o livro com a sua irmã, a cronista já colecionava em seu currículo mais de mil crônicas em 70 anos de atuação na imprensa. Apenas para contextualizar, aos 93 anos, ela publicou sua última crônica no Estadão, ‘A inspiração não vem para todos’. Ou seja, a sua vida ativa foi o maior exemplo para se desmistificar a degradação humana por meio do processo de envelhecimento.

De armas na mão pela liberdade, escrito em 1995; Não aconselho envelhecer, também de 1995, e A cobra que morde o rabo, em 1999, são três crônicas interessantíssimas em que Rachel de Queiroz apresenta a velhice na ótica da sociedade com seus ‘conceitos e preconceitos’; ‘idealizações e representações’; e sobretudo, com sua violência simbólica constante contra a pessoa idosa. A primeira crônica é um relato de um fato ocorrido em “Porto Alegre, em que uma senhora de 90 anos arma-se com dois revólveres e abre caminho para a rua, garantindo o seu direito de ir e vir”. As outras duas falam da não aceitação da velhice (o outro é o velho, e não nós) e consequentemente as constantes tentativas para se rejuvenescer; e como o tempo é implacável com todos, da mesma forma, o que faz da negação algo inútil.

Raymond Williams, referência dos Estudos Culturais, diz que uma mente clara produz uma escrita clara, que uma mente adequadamente informada expressa os fatos sem dificuldade e que uma imaginação poderosa entusiasma os escritores e emociona os leitores. Essa citação nos remete perfeitamente a Rachel de Queiroz. A crônica ‘De armas na mão pela liberdade’ é um relato fiel da luta dos idosos marginalizados e desprovidos de políticas públicas adequadas às suas realidades, sempre muito específicas (e ineficientes), até mesmo no que se refere ao envelhecimento e as relações de gênero.

É uma crítica à arbitrariedade e o autoritarismo policial, e até mesmo uma indicação de que quando se fica velho pode se tornar ‘caso de polícia’; as condições de moradia a que são remetidos os idosos (no caso específico, a idosa mora no ‘porão’), a forma como os ‘velhos’ (a muitos são atribuídos esta expressão) são taxados de incapazes, e até mesmo de andar nas ruas sozinhos, por isso, ficam trancados nos abrigos; e sobretudo, as críticas as campanhas governamentais, que tentam criar uma identidade ‘feliz’ para um idoso que se sente frustrado por não ter nem mesmo seus direitos básicos assegurados.

E outras críticas são depreendidas das crônicas de Rachel de Queiroz sobre o envelhecimento, como a luta contra a velhice, mesmo que esta batalha ‘seja inglória’, como ela mesma define; a ‘ridícula tentativa de resgatar a jovialidade dos idosos nas propagandas de valorização da terceira idade’, o que fortalece a tônica dada à crônica de uma constante não aceitação e luta contra a velhice; o preconceito, o pressuposto, a projeção, a personificação, a idealização da velhice, e, sobretudo, as tentativas de se estabelecer uma identidade única e imutável do processo de envelhecimento.

Apenas fazendo uma digressão, dados atualizados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o grupo de idosos de 60 anos ou mais será maior que o grupo de crianças com até 14 anos já em 2030 e, em 2055, a participação de idosos na população total será maior que a de crianças e jovens com até 29 anos. Os idosos, segundo a pesquisa, são em sua maioria mulheres (55,7%) brancas e moradores de áreas urbanas (84,3%) e correspondem a 12,6% da população total do País, considerando a participação relativa das pessoas com 60 anos ou mais.

O que podemos observar quando se lê as crônicas é a forma intensamente pessoal de Rachel de Queiroz de se expressar; o seu diálogo com o leitor, demonstrativo de um conhecimento vivido e acumulado, tudo isto presente em cada palavra, frase ou sentença, com seu tom e ao seu modo. E nos remetemos novamente a Raymond Williams, em que observamos que as crônicas de Rachel de Queiroz tem este efeito, transcende o tempo com uma importância intrínseca e permanente, de modo que podemos ver a vida através delas!

Tais observações são confirmadas por meio do trecho: “Ninguém parece entender que a primeira condição para o velho não se sentir tão velho é deixa-lo sentir-se livre. Resolver seus problemas pessoais; ser ele próprio quem conte os seus sintomas ao médico, ser ele próprio que decide se toma os remédios prescritos – como faz todo mundo. Deixar que ele se liberte um instante ao menos da tutela dos entes queridos e não lhe ralhar se ele, liberado, der uma topada, um tropicão, no exercício dessa liberdade. Deixá-lo que durma só, que não lhe apareça ninguém no quarto à meia-noite, perguntando se ele está insone (está muito feliz, lendo), se esqueceu de tomar o Lexotan...” E ao chegar aos 93 anos e ainda ser cronista do Estadão, Rachel de Queiroz não poderia deixar de pronunciar outra frase, que não fosse esta: “Por que, queria me ver aos pedaços?”

(Letícia Jury, jornalista, pós-graduada em Assessoria de Comunicação e Marketing, mestranda em Comunicação, Cultura e Cidadania – UFG)

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