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OPINIÃO

Ouro de defunto

No tempo antigo, principalmente no interior, os abastados enterravam suas fortunas - ouro, joias e patacões - para deixá-las fora do alcance dos aventureiros, ladrões e de jagunços. lnexistindo bancos e cofres seguros, e sendo desconhecida a inflação, o seio da terra era um esconderijo mais seguro do que as burras e os baús.

Era o costume, ninguém estranhava.  E com a imprevisibilidade da morte, não raro alguém carregava para a sepultura o segredo que não ousara confiar nem mesmo à mulher debaixo das cobertas.

Diz o povo que defunto que deixa dinheiro enterrado não encontra sossego no outro mundo enquanto não vem de lá oferecer a algum vivente o que deixou oculto, às vezes em locais funestos - taperas abandonadas, cruzes-das-almas, portas de cemitérios, às vezes dentro da própria casa.

Adianta a tradição que no momento do desenterro sobrevêm gemidos, me-acodes, "ai, meu Deus do céu!" e outras aleivosias, que seriam artifícios do Capeta para desencorajar o ganhador, uma vez que a alma doadora dele se libertaria no momento em que o ouro deixasse a terra.

Conta-se de muita gente cujo enriquecimento - aparentemente sem causa - é creditado aos defuntos.  E dizem que ainda existe muito lugar encantado, pois sendo norma desenterrar à noite, nem todo mundo é suficientemente corajoso para enfrentar o coro de latumias que aparecem na hora.

Lá pelo ano de 1946, eu regulava meus dois anos de idade, meu pai caiu de cama, sendo levado para Barreiras, na Bahia, para curar urna gangrena que lhe roía a popa.  Lá permaneceu dois anos penando numa cama sem poder levantar-se, a ponto de assar as costas de tanto ficar deitado.  Doutor Salvador, que o assistia, colocava pedaços de carne de boi em cima da ferida para a gangrena comer, e, assim, poupar a do seu paciente, enquanto aplicava injeções diárias da nova maravilha recém-inventada, a penicilina, que ainda era conservada no gelo e quase valia seu peso em ouro.

lnexistindo, na época, os recursos da previdência, os gastos com o tratamento saíam das porteiras dos currais da fazenda, indo, aos poucos, empobrecendo a família.  Com minha mãe sempre ao lado, ele ocupava um quarto ladrilhado na casa que alugara.

Conta minha mãe que numa noite, estando ela entre dormindo e acordada, apareceu-lhe uma mulher desconhecida que, mostrando-lhe no meio do quarto um ladrilho solto, mandou que ela cavasse com as mãos a terra e apanhasse uma garrafa de ouro em pó lá existente. Sob a orientação da estranha mulher do sonho, ela foi lá e tirou sem dificuldade o ladrilho e foi removendo a terra fora, dando logo com o gargalo da garrafa, para dali a pouco retirar o precioso frasco, quase cheio de ouro em pó.  No entusiasmo do achado, que iria permitir o tratamento de meu pai num lugar mais recursoso, ela o chamou aos gritos, mas na hora em que o viu levantar-se de súbito - ele, que sequer podia mover-se da casa - ela se assustou e acordou do sonho.

Logo que acordou, reparou que de fato existia o ladrilho solto e vieram-lhe arrepios, quando ela se lembrou do sonho que acabara de ter. Mas faltou-lhe coragem para cavar.

Terminado o tratamento, durante o qual ela até evitava, de puro medo, olhar para o ladrilho, voltaram para casa em Dianópolis, esquecendo o sonho.  Mas, dias depois, a mulher voltou em outro sonho avisando-a de que se ela não fosse buscar o ouro, este seria dado para Dos Anjos, uma senhora amiga da família, residente lá em Barreiras.

Tempos depois, aparece-lhe a mulher para dizer-lhe que o ouro havia sido dado a uns paraibanos chegantes em Barreiras.  E não voltou mais.

Soube minha mãe, através de conhecidos, que no quarto onde ela passara dois anos, aparecera um buraco cavado justamente sob o ladrilho solto.

Nas minhas férias escolares, quando eu ia a Barreiras, costumava tomar sorvete no Bar Paraibano, de propriedade de uns nordestinos, que, chegando ali na condição de retirantes, ficaram ricos de uma hora para outra sem explicação.

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected]).

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