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OPINIÃO

Pelas fendas de um abismo

Indominável torpor cambaleou meu corpo, minhas pernas baquearam e meus olhos não cediam à letargia incontrolável que me adormecia sem querer, prostrando-me inerme vencido pela hipnose de Orfeu!

E em levitando o corpo, eu abandonava, comandado por imperiosa força que me determinava voar, até que fui levado por entes que eu não via às escuridades de gigantescas fendas infectas, de rochas lodacentas, cujas aberturas negras e úmidas pareciam descer para um abismo sem termo!...

E quanto mais meu ser atormentado descia, menos eu divisava os píncaros de onde caí, menos divisava as estrelas bruxuleantes dos céus, menos supunha de onde eu vinha e para onde eu ia, e mais de estupor repletava minha alma curiosa!

O medo foi se escasseando à proporção que eu reconhecia estar mais uma vez me distanciando pra longe do meu casulo... Sabia que ligado estaria ao meu fardo terrestre por liames que só a Deus é permitido romper, razão confortante de aceitar o desafio do estranho, e sondar os mundos além Aqueronte...

Quando não mais esperava cerrar a descida, meu voo lento foi se tornando e meus pés tocaram a escorregadia ponta de negra e fria rocha, qual uma ave experimentada e leve fiquei ali, ali fiquei como águia noturna adivinhando talvez o que poderia estar se movendo entre as brumas fedorentas!

...Minha mente desconhecendo a curiosidade que me invadia, ondas clarificantes emitia para o Alto em espirais, e seus reflexos eram tênues despejos de flamas que revelavam o tenebroso fundo daquele abismo...

...Vi, de alma em pranto, de surpresa em surpresa, seres afundados em excrementos fétidos tentando emergir daquela movediça massa que mais os engolia quanto mais tentavam, a golpes de braços e urros horripilantes, livrar-se da engolfadora garganta de urina e fezes!

“Mas, o que é isto, Senhor? Indagava meu ser, eletrizado, se em Dante eu não cria – em Dante agora eu creio, pois diante do que vejo sinto ser comédia e nada mais o que Dante dissera o que Dante escrevera, o que Dante gritara!”

Aterradoras vozes gritavam por socorro, suplicavam piedade, bradavam por alívio – e aqueles seres negros e nauseantes, erguiam os braços vestidos de lama derretida exalando a fetidez que mortal nenhum suportar poderia!

Não tinham olhos nem dedos, nada, neles, tinha forma, eram sombras cobertas de podridão escorregadia, eram fungos de uma fossa descomunal!...

“Deus! Se existes, tem piedade! Bradei. Retira desse averno tantos infernais demônios! Se aqui se acham atolados no que são, não são mais do que suas próprias emanações, nas quais se encontram agora atônitos, afinal conhecendo quem realmente são e reconhecendo quem verdadeiramente foram!”

“Mas podes, se o quiseres, Grande Pai, libertá-los de tão penosa miséria, de tão enganosa morte – que não os matou! Estende Pai, tua bondade – e os perdoa!”

Um rastro de intensa luz se fez do céu ao abismo, e por aquela luminosa esteira desciam não sei de onde seres alvos e belos, com macas e estranhos carros, homens de asas e músculos densos afundavam-se no charco e emergiam das profundezas conduzindo os seres escuros, e todos, em todas as formas, por todos os meios, recolhiam céleres e silenciosamente a legião dos mortos –que não morreram!

“Teu corpo, Rion, que ora no leito dorme – me disse uma voz, é usina permanente gerando poderosas energias, razão pela qual podes retirar dos fundos desse abismo tão pobres irmãos carentes do esforço de todos nós...”

– Fala-me o que devo fazer e mais que depressa o farei, foi a resposta minha em forma duma pergunta cuja resposta só não fora maior lição pela minha riqueza de ignorância:

– Pensa em Deus, Rion. Com tua mente intangível trazes do teu corpo que dorme e gera forças – as forças de que precisas para arrancares dos fundos desse inferno tantos irmãos...

E raios poderosos chegavam da minha mente física à minha desconhecida mente etérea e se espalhavam pelo meu duplo corpo, soltando lastros de luz pelos quais subiam os seres grotescos e claudicantes...

Eram recolhidos por outros seres diáfanos e elevados à tona, numa enormidade que parecia escurecer o céu – e gritavam de dor, de alegria, de surpresa – alguns temendo ficar... Não pude avaliar o tempo em que tudo acontecia, parecia expediente de horas – e horas...

Ao cabo de muito esforço por parte de tantos, disse-me amigável Voz que ainda restava um, e que me competia buscá-lo onde fosse.

– Onde está ele? De quem se trata? Qual é o seu nome? Por que não emergiu com os demais?

– Vai e ajuda. Não indagues quem seja e faze o bem enquanto podes. Ele está inerme no meio do excremento...

– Mas, mas... Titubeei, olhando o charco em bolhas querendo me engolir... E se eu morrer?

– Os que foram retirados daí agora, não estavam mortos, Rion. Foi o que respondeu a voz.

– Queres que eu salte lá e busque o infeliz? Não poderíamos puxá-lo com a força da mente?

– Ele não está em sintonia conosco, Rion. Entorpeceu os sentidos e refugiou-se numa morte aparente. Está tão preso aos hábitos humanos que precisa de voz e mãos físicas para ouvir e assimilar alguma coisa. E somente você está ligado ao corpo físico que dará sustentação ao seu espírito que, por isso mesmo, será percebido por ele.

– Mas eu saltar-me aí… Não sei nadar nem em água...

– Escuta, Rion, e tenta compreender: “o raio de sol atravessa o charco e não se suja...

– Mas eu sou espírito denso, falei. Esse charco aí é fluído quase físico como o meu duplo astral. Vai haver identidade; terminarei ficando por lá...

– Esqueceste que tudo é mente? Entra em sintonia com as forças maiores; não mentalizes odor nem impregnação nenhuma; simplesmente desça ao abismo por amor a alguém e ajuda quem precisa de você...

– Não te entendo bem, respondi. Mas creio em Deus. Por isso, vou.

Desci protegido por um halo, em meio ao excremento escuro um foco claro que me protegia... Vi estranho ser, repelente e recoberto daquela matéria viscosa do abismo fundo.

– Vem comigo, em nome de Deus. O ser escuro se moveu. Entrou na minha aura, sentiu-se confortado; agradeci a Deus o ter-me favorecido com o halo que me servia de proteção e vestimenta além de conforto a quem precisava tanto quanto eu!

Tal jato de energia nos sugava para cima e qual não foi minha estranheza ao notar a interligação existente entre aquele ser errante a outros espectros escuros que se emergiam dos fundos daquele abismo, acompanhando o sofredor que eu ajudava... E fomos elevando-nos rapidamente, apesar da carga espectral parecer pesada, e aquele chumaço do abismo tétrico ser tão denso como o bafo de um dragão... Vencido algum tempo já estávamos colocados em repouso sobre relva, e os seres deitados respiravam calmos, naturalmente alguns balbuciavam doces palavras de gratidão...

Estavam sendo alimpados por serviçais da legião humilde dos trabalhadores de Deus, igualmente silfos libertos de duras provações resgatando com o suor e a humildade crimes hediondos que também cometeram...

“Que bravata – perguntei – fizeram esses tais, para sofrerem penas de superlativas dores, chafurdados numa fossa descomunal e sem termo, lotados de podridão, vermes e excrementos a lhes borbulharem pela boca, pelos olhos?”

– Talvez, meu filho, fosse melhor perguntares o que foi que não fizeram... Respondeu a voz.

Já fora do abismo horrendo, onde a relva se espraiava a perder de vista, o luar prateava tenuamente as figuras exauridas, escuras e tétricas que repousavam em número sem contagem...

“Mereceram um começo de paz.” Disse alguém, por quem, aliás, me interessei, procurando-o, em torno de mim – e, para espanto meu...

Alguns minutos após, despertei.

(Iron Junqueira, jornalista)

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