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OPINIÃO

Quem solta o verbo demonstra que o preconceito é uma prisão

A moça é bonita, bem tratada, com os cabelos arrumados num corte avançado, diferente, com brilho e estilo marcantes. É castanho e meio curto, quase chanel, com leves mechas claras esparsas em suas pontas. Morena, estatura mediana, magra, com braços fortes e torneados, a cabeleireira demonstra habilidade com o secador de cabelos. É uma exímia fazedora de mágicas nos próprios e nos cabelos alheios. Risca a cabeça das clientes com o pente, separa as mechas, prega-as com pregadores tipo piranha, e vai secando parte por parte, transformando os cabelos sem vida em viçosos, mortos em vivos, rígidos em flexíveis, opacos em brilhantes, feios em belos e ondulantes. Em 40 minutos, nos longos e nos curtos, opera o milagre, ligando e desligando seu aparelho de trabalho, um secador barulhento e consumidor de energia.

Singela e discreta, sua linguagem sugere uma origem simples. O ambiente em que está é um salão de beleza em bairro nobre. A roupa que veste e toda a sua aparência, como a pele sem manchas e as mãos bem tratadas, conflitam com o modo de se expressar. Poucos ouvidos percebem, tal a simpatia e capacidade de trabalho da moça, que conta aos poucos, pedacinhos da sua história.

Com a família esfacelada, a única irmã mudou-se para São Paulo. Os irmãos acabaram indo embora também, um deles para Montes Claros. Foi morar com este, que logo se ca-sou. Ainda solteira, é apaixonada pelo sobrinho de quatro anos, com o qual brinca todos os dias após o trabalho. O menino a espera para usufruir da sua companhia e carinho. “Eu amo aquele menino!”, ela diz. Na época em que chegou, precisou ser cuidadora de uma velha senhora sem memória. Simultaneamente, fez o curso de cabeleireiro no SENAC, na ocasião, por um custo proibitivo de mil e quinhentos reais. Todo o material usado no curso foi comprado por ela, já que as vagas com produtos incluídos eram poucas e por concurso e ela não teve acesso a elas. Foram dezoito meses de aprendizado.

Nesse meio tempo, a senhora portadora do Mal de Alzheimer faleceu, e ela, pela proximidade com os donos, foi trabalhar numa padaria, onde aprendeu o ofício de caixa, mas não chegou a fazer o curso de informática. Assim, trabalhava dois expedientes, um na padaria e outro num salão de beleza, durante anos. Lá ficava mais na química, na escova progressiva, enfeitando as mulheres da alta sociedade. Cresceu profissionalmente, enquanto aprendia incansável na sua sede de fazer bem feito, de assimilar tudo de positivo que cruzasse seu caminho.

Agora suas mãos são finas, em comparação com o tempo da lavoura. Seu cheiro é de cosméticos e de xampu, trabalha com clientela mais rica, seu ambiente é de ar-condicionado, com televisões de tela plana, serviço de segurança, câmeras, portão fechado e uma grade de onde se pode ver a rua e abrir ao cliente com menor risco de assalto. A vida está mais leve. Diz ter vontade de se casar, de ter filho, mas por enquanto vai de sobrinho mesmo, levando seu bom trabalho de cabeleireira. Com um sorriso amplo que a todos compra, com meiguice e delicadeza, os verbos não tão bem conjugados desaparecem, para deixar à mostra como pode ser cruel o preconceito. Porque ridículo e burro tal sentimento sempre será.

(Mara Narciso, médica e jornalista)

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