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OPINIÃO

Um certo energúmeno cortador de hóstias

Não se trata do magnífico romance de Clara Down, há pouco lançado, festivamente, a 27 de maio último, na “Casa de Cultura Altamiro Pacheco”, departamento da ‘Casa Colemar’, Academia Goiana de Letras. Trata-se do sinistro personagem da obra homônima, que perpassa todo o texto, adejando como ave agourenta, todo esse romance simbolista, editado pela ‘Livres Pensadores’, 153 págs.

Logo na entrecapa: “Não é parte da história de lugar  algum, é uma ficção inspirada em mitos, porque as verdades são aspas abertas...” E o bordão que soa como uma frase de Edgard Alan Poe: “Jamais seremos livres”. No Capítulo I, intitulado ‘Vermelho Silêncio’, um texto de Hugo de Carvalho Ramos:

“Estranha sinfonia anda n’alva vibrando batuíras e xexéus, sanhaços e azulões;/ por sobre os buritis das marrecas o bando vai, em arco, guinchando em busca dos sertões”.

Na Parte I, intitulada “A Flor Carnívora da Serra dos Pireneus”, um texto do poeta Érico Curado:

“E, além, o vale imenso e o rio que, disforme, Das brumas vai seguindo o branco vulto enorme/ Desatam-se em perfume os brancos laranjais.../ E o gado vem descendo em procura de aprisco, / Abre-se, então, o sol, em fogo, o flavo disco,/ E, aqui e ali, se exala a alvura dos casais...”

Logo adiante, referência ao sinistro Anjo Natanael, a quem “eu deveria odiá-lo por ter-me vendido, mas devo-lhe a minha alfabetização”. E acresce: “Tudo que sei, e vou contar, aprendi com ele. Sim, foi Natanael, o meu anjo das decisões, sobre coisas ocultas, anjo da vingança e do fogo, foi ele quem me ensinou tudo. Se paguei por isso? – Paguei o preço que ele pediu – todas as vezes, desde os meus oito anos, ali num trecho raso do rio das Almas, e pagaria mais... Se ele quisesse, eu o pagaria até sentir-me estudada em Política e História.” (pág. 22).

E prossegue, a narrativa atroz:

“Eu tinha quatorze anos quando meu pai negociou com Natanael a minha venda para Ramiro Santiago. Minha mãe, com os olhos vermelhos de tanto chorar, deu-me seus últimos conselhos: ‘Vá, Flor, e não volte nunca mais aqui! Minha mãe tinha certeza de que nunca mais poria os olhos em mim novamente, como jamais os pôs outra vez em nenhuma outra de suas cinco filhas vendidas.’ Eu não chorei, meu coração era duro como uma pedra.” (pág. 22).

Sobre o sinistro Cortador de Hóstias, a narrativa registra: “...Eu nunca tinha pensado nessas coisas antes daquela noite em que fui mais o Tonzé na casa da dona Valéria Marnefe. Um pardieiro fedido a urina e safadeza, onde os homens vão pra tomar umas pingas e bolinar as meninas. Mas Dona Valéria compra aquelas que sobram da leva de Natanael. Aquelas enjeitadas pelas famílias dos barões: as bobas, as de pele encardida – nem branca nem preta; cabelo sarará – nem louro nem preto; chorona, faladeira ou braba demais... As que tem  algum defeito físico ou manchas de nascença não sobem na carroça de Natanael, nem a dona Valéria compra ‘prestam pra nada’, diz ela, e completa – ‘nem pra lavar chiqueiro’. Tenho tanto dó dessas  enjeitadas...” (pág. 25).

Na Parte II, “Vale das Quimeras”, um soneto de Érico Curado, cujos tercetos assim se expressam:

“Em bandos passam morcegos, / As rãs coaxam nos regos / Geme o vento em disparada...

E entre as estrelas, no poente, / O arco-de-ouro do Crescente / É uma foice ensanguentada.” (pág. 31)

Prossegue, a narrativa:

“Só agora sei por que meu pai me obrigou a ir à cidade naquele dia. Depois, antes de voltar ao rancho, iríamos à propriedade do Barão Henrique de Montejanos – o maldito Vale de Quimeras – para que Ramiro pudesse conferir o produto que estava comprando de meu pai!” (pág. 40).

Mais adiante, um registro importante para o mister de cortar hóstias:

“O padre Jesuíno tinha perguntado se eu não podia ir cortar as hóstias nas igrejas. Trabalho que tem ser feito por homem, e eu, como um bom seguidor das leis da Igreja, fui ligeiro em dizer que sim. Um dia, na semana eu ia pras igrejas. Quando chegava às igrejas, as beatas tinham deixado as placas de hóstias prontinhas, todas amontoadinhas... E então era só eu pegar a tesoura e recortar os discos com todo o cuidado desse mundo, e não pense o senhor que essa é uma tarefa fácil. Não é.Aquela tesoura de cortar as hóstias. É a coisa mais bonita e braba que já vi  na vida.” (pág. 63)

“...Os dias, depois da minha fuga de Ramiro, seguiram, porque a vida sempre segue... Se a vez chega, a vida segue e se a vez  não chega, ainda assim a vida segue, pois não há tempo para esperar que outra vez chegue...

Eu me cafetinei por muito dinheiro e às vezes por dinheiro algum. Eu era do mundo e o mundo estava dentro de mim, num vaivém erótico, fazendo-me gozar seus prazeres mais insanos e profanos. Na casa de Valéria Marnefe, tudo era permitido debaixo dos lençóis, desde que o dinheiro rolasse por debaixo do forro da mesa.” (pág.76). “O que Venceslau tinha, e pessoa alguma duvida, era o dom da confiança. Se ele dissesse ao coxo para andar, o coxo andava. Pois de seus olhos fluía uma irradiação capaz de coalhar as águas de um oceano, de sua boca saíam palavras tão altruísticas, tão espetaculares que o seu povo inquietava em seus assentos, de tal modo que precisava ser contido pelos diáconos: Alguns tremiam, outros choravam, aquele gritava glórias, aquela batia palmas e também os pés, o jovem cambaleava no salão, de olhos fechados, mãos estendidas ao céu,(e) dizendo coisas indecifráveis; uma senhora despencava no chão como se fora arrebatada da terra, e imóvel ficara por mais de uma hora” (pág. 83).

“Algum tempo depois, Venceslau voltou à cabana do velho curtume, mas dessa vez para se despedir (...). Venceslau olhou para o sol, que irradiava uma luz ardente capaz de arrebatar os vincos das madeiras, e fazê-las estalar como se sementes de mamonas fossem e, tomando de um palito de fósforo, preparou-se para riscá-lo na madeira. Ao lançar-se nesse feito, ouviu, ao longe, uma canção, como se fosse uma cantilena repousante sobre o rio das Almas; como se um coro de anjos bailasse sobre suas intenções a fim de impedi-lo. Seria um sinal dos céus? Deus, em sua infinita bondade, estaria pedindo para não esquecer a sua amada Flor Maria?” (pág. 87). Invadido por esse querer, sem pestanejar, seguiu a vibração da música, sustenido pelo tom alado e levitou sobre formigueiros e lobeiras até que avistou uma senhora cantarolando, enquanto colhia, no ar, flores do sempre-viva e as colocava num recipiente de barro.” (pág. 88).

“Outro dia, eu fui passear pela Fazenda ‘Vale de Quimeras’, segui o nascer do sol pela estradinha que leva à ponte do Rio dos Peixes para molhar os pés e, quem sabe, mais adiante, no trecho raso e manso do rio, se a água não estivesse muito fria, tomaria um banho, nua. Nua mesmo, como costumava fazer desde pequena!” (pág. 89).

“Naquela noite, depois de um dia abençoado pelas mãos de Deus guiando as de Hortense, excitar-me foi inevitável, e, por fim, me permitia autofornicação umas três vezes. Naquela madrugada, fiquei de molho na bacia de água fria para me acalmar, depois acresci água fervente para me purificar. Em seguida, fui dormir santificado.” (pág. 95)

Veio, em seguida, a indagação: “Vai prender eu só porque não sinto remorso em cortar hóstias? Deixa de ser besta, homem. Aquilo é o corpo de Cristo não. É só de mentirinha... Todo mundo sabe que é só um símbolo. Desde que o mundo é mundo, sabe que é só um símbolo. Desde que o mundo é mundo, a gente ouve essa história. Tá na Bíblia, o senhor nunca leu?” (pág. 99).

“Seguindo pelas trilhas a caminho de Vaga Fogo para visitar Venceslau, de longe avistei a Serra dos Pireneus, e lembrei-me do que Natanael me dissera sobre a lenda de São Paulo. Diz a lenda que, depois de muito vagar por esse mundo pregando o Evangelho, Paulo, o Apóstolo, enterrou o espinho que jazia em sua carne aos pés do Ipê branco que fica no pico dos Pireneus, de frente à capela da Santíssima Trindade. Ali, os romeiros rezam por Paulo e por seus amores que lhe ferem a carne como um espinho.”(pág. 101).

“Nos sábados de manhã, como de costume, fui aos vilarejos, a fim de ministrar cura aos doentes. Muitos, quando se recuperam, vão para (a) Geração Eleita.

Nos dias que se seguiram, passei a visitar Ramiro sempre que podia, para orar por ele. Isso faz com que eu me sinta puro e longe das consequências de me deixar conduzir pelos desejos carnais. O meu pai dizia que o sexo arrasta o homem por caminhos tortuosos e viciosos. E eu pareço estar viciado em me autofornicar. Mas, quanto a isso, haverei de prestar contas apenas a Deus, porque ‘é  melhor cair na ira de Deus, do que na ira dos homens’.” (pág. 102).

No Capítulo II, sob a epígrafe “Vinte Anos Depois”, poema de Hugo de Carvalho Ramos, assinala:               “E feito essência, e feito cor e som,/ Livre das leis de peso e da atração,/ Na esfera gravitar do Excelso e do Bom.

“Para que, no assoniado Nirvana,/ Dissolvido no Todo o coração / Chore a saudade da miséria humana.” (pág. 133)

Mais adiante, no Capítulo III, esta assertiva peremptória:

“Não há dúvidas de que Ramiro Santiago de Montejanos amava Flor Maria. Amava tanto que fora capaz de se fazer de louco, apenas para estar ao seu lado. Amá-la tanto que pagou caro ao médico e à enfermeira para que jamais revelassem que sua doce Flor estava catatônica. Caso isso acontecesse, seu estado vegetativo seria ainda mais pesaroso, por causa das especulações. Lídia sempre soubera desse amor, não se importara em se alimentar das migalhas. Ramiro já havia lhe advertido sobre sua mania de dormir no paiol, por causa das cascavéis que costumavam se esconder ali, em noites de chuva.” (pág. 136).

No Capítulo IV, “O Efeito ‘Comédia Humana’, em que, uma vez mais, Hugo de Carvalho Ramos é chamado para ilustrar o texto original:

“Assim fico, gelado e resupino,/ Olhos vidrados, dentro a treva imensa, / Petrificado pelo meu Destino.

Eis, sonâmbula, a Noite ascende a prece / Da alma das plantas, que o jardim incensa,/ -  e, lenta, a Febre baixa e se arrefece poderia realmente existir, e que o sonho fora um presságio...”

“Flor Maria correu como se tivesse raios nos pés. Correu, correu com o seu pequeno filho de três meses nos braços. Disparou a caminho do vilarejo da Lagoa, presumindo que o tal lugar poderia realmente existir, e que o sonho fora um presságio, é que Deus lhe dera a chance de mudar o rumo da história de seu filho, o filho neto do Cortador de Hóstias.” (pág. 147).

(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro Efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 -  E-mail [email protected])

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