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OPINIÃO

Estamos começando a viver a quinta onda do terrorismo internacional?

Um cheiro de pólvora está no ar. Há uma perigosa ignorância dos principais atores Internacionais sobre o que é o Estado Islâmico e, principalmente, sobre as suas diferenças em relação a grupos terroristas, em especial a Al Qaeda. Os lamentáveis acontecimentos do dia 26 de junho de 2015 devem servir como alerta para a necessidade de compreendermos com mais profundidade esse fenômeno historicamente novo.

Em 26 de junho foi registrado mais um capítulo na sangrenta e longa história do terrorismo no mundo contemporâneo. Em ações espetaculares, o Estado Islâmico "comemorou" e lembrou à comunidade internacional a data de seu primeiro ano de existência, atuando direta ou indiretamente em três ataques praticamente simultâneos na França, na Tunísia e no Kuwait. Os três ataques terroristas deixaram o total de 67 mortos, além de dezenas de feridos, foram crônicas de mortes anunciadas, pois ocorreram menos de um dia depois de um dos porta-vozes da organização ter proclamado que, em breve, mais xiitas e cristãos conheceriam o destino que lhes foi traçado.

A apologia da violência não é novidade quando o assunto em pauta é o Estado Islâmico. Nos últimos 12 meses, esse grupo coloca sistematicamente na internet vídeos que exibem toda a sua barbárie. Produzidos com técnicas e equipamentos de última geração, esses vídeos funcionam como uma poderosa arma de propaganda a proclamar as sucessivas vitórias da organização.

Em um curto espaço de tempo, está sendo consolidado um novo paradigma de terrorismo que, entre outros aspectos, exerce forte influência sobre grupos terroristas, como o Boko Haram e a Al Qaeda do Magreb Islâmico. Além da propagação de um modelo nefasto, o Estado Islâmico exerce um papel altamente destrutivo nos cenários político, econômico e social do Iraque e da Síria, ambos países caóticos.

Como afirmou o grande historiador Eric Hobsbawm, na introdução do seu livro Era dos Extremos, a nossa primeira tarefa é tentar compreender os fenômenos, e isso não significa aceitá-los. Assim, é imperioso definir a natureza do Estado Islâmico, os seus fundamentos e as suas fragilidades. Dessa forma, os estudiosos darão uma poderosa e significativa contribuição para os Estados e para as Organizações Internacionais, notadamente a ONU, enfrentarem esse poderoso inimigo. Em outras palavras, conhecer o inimigo é passo importante para levar a cabo a sua derrota.

Quatro ondas - O terrorismo pode ser estudado com abordagens e metodologias distintas. Não há consenso sobre a sua definição. O sentido etimológico é terrere e sugere a ideia de alcançar objetivos por intermédio do medo, do terror e da violência, fora de mecanismos legais e formais, atingido os seus inimigos diretos ou indiretos, inclusive civis inocentes.

Para fins deste artigo, seguiremos o caminho proposto por David C Rapoport, sistematizado em The Four Waves of Modern Terrorism. Rapoport estuda o fenômeno utilizando o conceito de ondas, isto é, contextos da História que são caracterizados por ações terroristas com objetivos e características comuns e fases de ascensão e de declínio de organizações. É importante sublinhar que desde fins do século XIX, o terrorismo está profundamente implantado no mundo contemporâneo. A primeira versão do ensaio de Rapoport foi publicada na Current History, em dezembro de 2001, p.419-25.

A primeira onda começou no Império Russo, a partir de 1880, quando os anarquistas colocaram em prática a estratégia de assassinar políticos e militares ligados ao regime Czarista. O objetivo era destruir a velha Rússia em suas bases.  A legitimidade das ações estava na ideologia revolucionária. Como disse a militante Vera Zasulich ao ser presa: "Eu sou uma terrorista, não uma assassina". Desde então, não basta eliminar fisicamente o seu inimigo, mas dar ampla publicidade e assinar o ato criminoso, revestindo-o de significados. A segunda onda teve início após a Primeira Guerra Mundial, com a luta anticolonial na Ásia e na África, e trouxe como características mais acentuadas: o nacionalismo e a luta pela descolonização, com ações de guerrilha contra os exércitos regulares das potências coloniais e os seus representantes.

A terceira onda está relacionada ao contexto da Guerra Fria.  Rapoport denomina essa onda de New Left. O seu auge ocorreu entre os anos 1960 e 1980, época das ações terroristas de organizações como a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), as Brigadas Vermelhas, ETA (Pátria Basca e Liberdade) e o grupo Baader-Meinhof, uma onda fortemente influenciada pelo êxito dos vietcongs contra as Forças Armadas norte-americanas durante a guerra do Vietnã. As práticas e características da terceira onda são numerosas: sequestros de aviões, assaltos a bancos, assassinato de militares e funcionários de Estado e ataques com bombas, levando à morte centenas de civis. As ações são definidas e justificadas como retaliações e punições aceitáveis dentro da ideologia dessas organizações. Há duas ações nesse contexto que podem ser sublinhadas como emblemáticas: o massacre de atletas israelenses, em 1972, nas Olimpíadas de Munique, levado a cabo pela organização terrorista Setembro Negro, em 1978, o sequestro e assassinato do primeiro ministro italiano Aldo Moro.

Na interpretação de Rapoport somos, contemporâneos da quarta onda terrorista, que emergiu com a vitória da Revolução Islâmica no Irã, com a invasão do Afeganistão pela URSS em 1979 e, de forma mais ampla, com o fim da Guerra Fria. Esses fatos estimularam a ascensão de novas organizações, principalmente entre os grupos jihadista, que redefiniram objetivos e metas com base em concepções fundamentalistas.

A Al Qaeda, desde o 11 de Setembro de 2001 até 2014, passou a ser a organização terrorista mais emblemática da quarta onda, posição que vem perdendo nos últimos meses para o Estado Islâmico. Mas quais são as diferenças entres essas duas organizações? Estamos entrando em uma nova onda terrorista? A quinta onda? Para responder a essas questões, iremos comparar o Estado Islâmico com a Al Qaeda, uma das principais organizações terroristas da quarta onda.

Diferenças entre o Estado Islâmico e a Al Qaeda. A Al Qaeda ocupa posição fulcral não apenas nos estudos sobre o terrorismo contemporâneo, mas também na estratégia de segurança sistematizada pelas principais potencias do sistema internacional, notadamente da principal vítima do 11 de setembro de 2001, isto é, os Estados Unidos. Segundo The Washington Post, somente nos Estados Unidos foram criadas 263 organizações governamentais voltadas direta ou indiretamente para a segurança do país contra novas ações terroristas, sendo a mais famosa o Departamento of Homeland Security, que inspirou a célebre e premiada série de televisão, Homeland.

A informação do periódico norte-americano indica que os serviços de inteligência e segurança construíram os seus planejamentos de contraterrorismo para combater e eliminara a Al Qaeda e o seu modus operandi. O pressuposto é: o Estado Islâmico deve ser enfrentado com as mesmas armas que são utilizadas para combater a Al Qaeda. Trata-se de um retumbante equívoco, cujas consequências estão escrevendo a história contemporânea com letras de sangue, como aconteceu no último dia 26 de junho.

Quando comparamos as duas organizações, devemos considerar, em primeira instância que elas nasceram em contextos históricos bem distintos. Enquanto a Al Qaeda tem origem na luta de grupos jihadistas contra a ocupação soviética, no Afeganistão, em 1979. O Estado Islâmico tem a sua origem na reação à invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, e em seus desdobramentos políticos e religiosos, isto é, a ascensão dos xiitas ao poder, momento que desalojou os sunitas que recebiam proteção e apadrinhamento durante o regime liderado por Saddam Hussein.

A Al Qaeda possui, no máximo, algumas centenas de seguidores, não controlando nem governando territórios. O Estado Islâmico, por sua vez, tem sob seu controle um território do tamanho aproximado da Inglaterra e lidera um exército de aproximadamente 30 mil soldados, a maioria oriunda de países muçulmanos, como Tunísia e Arábia Saudita. Além de militantes de diversas nacionalidades, controla linhas de comunicação, transporte e recursos financeiros, inclusive contrabandeando e vendo petróleo no mercado negro e faturando aproximadamente dois milhões de dólares por dia.

A comparação permite, por exemplo, detectar que o jihadismo não é monolítico. A Al Qaeda, por exemplo, luta para criar o contexto que tornará possível a criação de um futuro califado, tem uma estrutura flexível e opera com redes autônomas que funcionam como células. O jihadismo do Estado Islâmico, por sua vez, é territorial, estruturado, com certa rigidez, em divisões administrativas, denominadas Conselhos. Há cinco mais importantes: o religioso, o econômico, o legal (Sharia), o de segurança e o de comunicação, todos sob o comando do Califa Ibrahim, enviado e representante direto de Maomé.

É importante destacar que o êxito do Estado Islâmico, especialmente no Iraque, está relacionado, em grande medida, às alianças com líderes tribais sunitas, descontentes com o governo de maioria xiita implantado pelo governo norte-americano, com militares muito bem preparados para confrontos em batalhas formais, que foram desalojados do poder, após a queda de Saddam Hussein, fato que explica os êxitos do Estado Islâmico na conquista de cidades e combates contra o Exército Iraquiano. Osama bin Laden ficava isolado, escondido em cavernas, sem contato direto e efetivo com os muçulmanos, cujos interesses dizia representar.

A Al Qaeda tem em sua natureza a luta contra o Ocidente e os seus aliados. A sua meta principal é aglutinar os muçulmanos em um confronto global contra os poderes seculares oriundos do Ocidente. Os primeiros militantes que, anos mais tarde, criaram o Estado Islâmico, eram sunitas extremistas que lutavam contra tropas de ocupação dos Estados Unidos com objetivo de fomentar uma guerra civil. Urge destacar que nessa época o grupo, se autoproclamava Al Qaeda do Iraque e tinha como líder Abu Musab al-Zarqawi que foi morto em 2006 em um ataque aéreo das forças de ocupação norte americanas.

Após um período de retração, o grupo voltou a atuar com toda intensidade em 2011, nas revoltas contra o regime de Assad, na Síria. Nesse momento, os seus princípios estavam ancorados em uma espécie de utopia reversa: os muçulmanos podem e devem retornar à vida pura e simples que existiu no califado de Maomé. O Estado Islâmico se apresenta como o caminho para reencontrar a identidade perdida de pertencer a uma comunidade espiritual, ideias materializada em um território reconquistado dos infiéis.

O Estado Islâmico está aproveitando as conjunturas favoráveis para colocar em práticas os seus projetos, isto é, caos administrativo e político no Iraque e a guerra civil na Síria, que funciona como polo de atração para centenas dejihardistas espalhados no Oriente Médio e em países de outros continentes e de dois aspectos de suma importância: a cisão entre sunitas e xiitas e as ineficazes ações colocadas em pelas potencias internacionais e regionais para contê-lo.

A Al Qaeda continua muito perigosa, mas, está fragmentada. A organização criada pelo falecido Osama bin Laden continua a se apresentar como a vanguarda abstrata da suposta insurgência global. O Estado Islâmico definiu um programa mais concreto: ocupação de território, refundação do califado de Maomé, não reconhecimento das fronteiras estabelecidas pelo Ocidente, no Oriente Médio e criação de uma comunidade islâmica governada pela sua rígida e peculiar interpretação da Sharia. Assim, as diferenças entre as duas organizações terroristas são substanciais. O Estado Islâmico possui uma estrutura de organização, de sustentação e estratégias de ação distintas da Al Qaeda. A rigor, o Estado Islâmico apresenta um grau de complexidade bem mais elevado que a organização de Osama bin Laden. Parece-me precipitado afirmar que vivemos uma ruptura profunda que permite sustentar que estamos presenciando a transição para uma nova fase do terrorismo. Todavia, é recomendável que comecemos a discutir seriamente nessa possibilidade. A história é implacável com aqueles que ignoram a realidade. Se de fato há uma nova onda, mais organizada e ameaçadora, devemos empregar as ferramentas eficientes e eficazes para que essa onda, que no momento aparece gigantesca no horizonte, se aproxime da areia e, ao tocá-la, se transforme em espuma.

Sidney Ferreira Leite, pró-reitor acadêmico e professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Belas Artes, Ph. D. em Comunicação, mestre e doutor em História Social (USP) e possui o curso de extensão -Terrorism and Counterterrorism: Comparing Theory and pratice (Universiteit Leiden).

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