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Fora de Lugar - Parte II

Fora de Lugar - Parte II

Devolva-nos a Palmatória


por Rafael Saddi

Marcos não era o tipo de professor que não se importava. Não. "É a espinha, a espinha dos alunos, e não a cabeça, que os professores devem atingir". Costumava dizer.

Achava que uma boa aula deveria sempre ser apresentada de tal modo que produzisse um certo arrebatamento, uma dor, um incômodo, no corpo da molecada. "A espinha. Eu lhes faço sentir a filosofia na espinha". Dizia para Mariana, uma professora de Artes baixinha, magra e bastante frágil e meiga por quem havia se afeiçoado.

Mas, foi justamente essa dor na espinha, esse incômodo trágico, que sentira alguns meses antes de se tornar responsável pela segurança pública da cidade.

Na época, tinha sido transferido para uma escola estadual da periferia, onde conhecera Mariana. Mal chegara no colégio, ouvira falar de Victor: "um aluno de alta periculosidade". Diziam seus colegas professores.

Mas, Marcos não se importava. Afinal, era jovem, entusiasmado e sabia como ganhar os alunos mais indesejados. E assim o fez. Em pouco tempo, tornou-se o professor mais querido da escola. O que "não ferra os alunos", o que "explica bem", "o professor que faz a aula passar rápido". Isso lhe rendeu, é claro, a antipatia dos colegas.

É obvio que em suas aulas reinava um certo CAOS. Um "Caos criativo", gostava de falar. Talvez por isso fosse adorado em todas as turmas que entreva, com exceção, evidente, de alguns poucos alunos nerds que odiavam a indisciplina.

Dizem que mesmo Victor nutria alguma simpatia pelo professor. Alguma. Pelo menos até o dia em que Marcos o mandara para a direção. Desde então, o professor começara a notar, ao menos era isso o que parecia, um certo olhar de ódio nos olhos do garoto.

Uma noite, ao terminar a aula, e se dirigir ao ponto de ônibus, Marcos percebera que estava sendo seguido. Tremeu. Estava muito escuro e se alguém lhe atacasse ali, não havia muito o que fazer.

Para sua sorte, um carro iluminara a rua, e o motorista gritara o seu nome. Era o diretor, seu João, oferecendo-lhe carona. Olhou para trás e viu um vulto. Não tinha certeza, mas a estatura, o formato do corpo, parecia com o de Victor.

Naquela noite, guardou em sua mente as frases que seu João lhe dissera no caminho para a casa: "Vivemos uma verdadeira decadência da moral e dos bons costumes, Marcos. Os jovens de hoje não respeitam ninguém.".

Resolveu comprar, imediatamente, um carro, ainda que não tivesse dinheiro. Longas prestações para um Chevette velho. Mas, não se passaram dois dias, para que algo de estranho acontecesse. No vidro de trás do seu carango, podia se ler, em meio a poeira, as letras desenhadas por um dedo: VOCÊ VAI MORRER.

Marcos sentiu medo, muito medo. Mas, não entraria em desespero se, no outro dia, na sala de aula, o próprio Victor não tivesse lhe dirigido a palavra para dizer: "Recebeu, professor, o meu recado?".

Depois disso, tudo nele havia mudado. Quanta ingenuidade achar que poderia transformar as pessoas! Percebera como era arrogante, como achava que a culpa para a indisciplina dos alunos era dos próprios professores, gordos, velhos, atrasados, desestimulados. Naquele momento, todos os problemas da educação se reduziram a duas únicas palavras: obediência e autoridade. "Os jovens de hoje não respeitam ninguém".



Resolvera, definitivamente, mudar de escola. Mas, alguns dias antes de solicitar a transferência, um colega lhe chamara no canto. Falava sussurrando sobre uma organização secreta de professores voltada para o combate à indisciplina e à insegurança. O núcleo local se reuniria naquele dia, naquela escola, no turno da noite, tão logo a escola ficasse deserta.

Após terminar a aula e esperar uma meia hora, Marcos se dirigiu para o local da reunião. Desceu as escadas e quase não acreditou no que vira. Estavam ali, reunidos, simplesmente todos os professores da escola, sem nenhuma exceção. Mesmo Mariana, a professora frágil e meiga.

Marcos foi recebido com aplausos. "Só faltava você, Marcos. Agora, o núcleo local está completo". Disse o diretor da escola lhe dando tapinhas nas costas.

Se dirigira, então, para os demais. "Comecemos". E os professores se ajoelharam e começaram todos a proferir, em voz alta e em uníssono, aquilo que parecia ser uma espécie de Oração:

“Devolva-nos, oh Santa Luzia, a palmatória. Essa maravilhosa arma criadora de civilidade e inteligência. Seja feita de couro ou de madeira, que tenha a extensão suficiente para cobrir a palma da mão e cinco buracos para servirem de sanguessugas. Castigo sem dor não educa.

Deixe-nos fazer como o honroso e heroico professor, que,  nos oitocentos, quebrara os pulsos de uma criança, tão forte e tantas vezes batera em suas mãos. Deixe-nos dizer como ele ao explicar os motivos de tal atitude: 'O fiz unicamente da indignação que me causou a repetição de tantas faltas de respeito.'

Devolva-nos o direito de carregarmos nossas varas, e como denunciava a traidora pedagoga do XIX, estender mais uma vez nossos alunos sobre os bancos da escola e açoitá-los exatamente como também faziam na época os senhores com seus escravos”.

Terminada a oração, todos se levantaram e o Diretor disse para Marcos: "Seu caso será resolvido". Abriu uma sala de aula e lá dentro, amarrado com uma corda e amordaçado, estava Victor.

Três professores seguraram o garoto e o levaram até Marcos. O diretor lhe entregou uma vara antes de dizer: "Dê nele uma lição, Marcos. É disso que precisam".

E Marcos olhou para os olhos do garoto. Eram olhos infantis, assustados, temerosos. Ali, amarrado, amordaçado, e imobilizado, não representava nenhum perigo. Mas, também pensou nas noites que ficara sem dormir e no profundo medo que sentia todos os dias, antes de sair de casa. Levantou o braço, apontando a vara para o teto, e, neste momento, ouviu Mariana, a garota frágil e meiga, gritar com voz grandiosa e olhos furiosos: "Na espinha, Marcos. Acerte-o na espinha".


CONTINUA...

(Segunda parte do conto escrito pelo doutor em história pela UFG  e professor na mesma instituição- Rafael Saddi)

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