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OPINIÃO

Êxtase e a agonia nas UTI's

O médico neurologista curitibano Aloísio Ponti escreveu um brilhante, ou seja, inteligente, bem escrito e provocativo, artigo sobre a situação atual das UTIs (Unidade de Terapia Intensiva), que transcrevo abaixo: “Uma breve história sobre as UTIs

No começo era a escuridão. Não existiam UTIs. Os pacientes graves eram tratados nas enfermarias e era aquela correria quando era necessário algum suporte maior, aparelhos, etc.. E aí o homem criou a UTI, e os pacientes começaram a ser transferidos para estas unidades, e o cuidado melhorou. E o homem viu que aquilo era bom.

Os cuidados foram ficando mais complexos, e mais caros também. Máquinas mais sofisticadas, equipes maiores. Então as diárias de UTI começaram a ficar cada vez mais caras, até atingir os níveis absurdos de hoje. E os  planos de saúde quiseram colocar restrições quanto ao tempo que os pacientes poderiam ter de cobertura nas UTIs, e isso gerou muita discórdia e confusão (até hoje). De certa forma, o governo quis entrar e regulamentar a confusão, mas isso gerou perdas para todos...

Então as UTIs por um tempo viraram um dilema. Se o paciente precisava ficar mais tempo, era aquela confusão, briga com convênio, cheques sem fundo...

Por outro lado... os donos dos hospitais começaram a ver aí uma oportunidade de aumentar a renda e equilibrar as contas combalidas de algumas instituições.

E aí o homem decidiu que seria interessante aumentar o tamanho das UTIs e o número de leitos. E a população estava aumentando, e a demanda por UTI aumentando também. Então o homem percebeu que isso era bom.

No SUS também havia necessidade de mais leitos, mas os honorários no SUS são muito diferentes, baixos, ...então cresceram as UTIs de planos de saúde e particulares, mas não os leitos de UTI de SUS...

E o homem percebeu que com UTIs grandes podia ganhar muito mais dinheiro. Então ele foi aumentando as UTIs, fechando leitos simples para criar leitos de UTI.

Mas as UTIs ficaram grandes demais, e às vezes o homem começou a notar que alguns leitos ficavam vazios, e isso era ruim...

Então, em alguns hospitais (que fique isso bem claro) , começaram a internar qualquer coisa nas UTIs!!!

Às vezes eu me pergunto se é má fé ou incompetência mesmo. Já fui chamado para atender paciente com Parkinson na UTI porque estava “tremendo muito” - era só ajustar a medicação! Enxaqueca em UTI, então, já perdi a conta... E, por outro lado,  também já atendi  paciente com hemorragia subaracnóide (quadro muito grave) internada no quarto!

A pergunta é: onde está a dignidade médica nestes hospitais, ó Deus?”

Eu, Marcelo, acrescentaria alguns pontos para discussão, como eventuais causas para a “explosão de aumento nas UTIs”: a- A queda naquela  medicina de enfermaria/apartamento, cujos honorários médicos são muito baixos, os médicos “dão uma passada lá de 5 minutos e depois somem”. b- A queda na semiologia médica, que é aquela ciência que o médico adquire  na faculdade para aprender diagnosticar sinais e sintomas no paciente. Com o Governo abrindo faculdades de medicina sem hospitais, faculdades de medicina sem médicos (muitas faculdades colocam não-médicos para darem aulas de medicina), faculdades de medicina sem prática hospitalar e sem prática com o paciente, o aprendizado prático (que é o principal) vai a zero. Consequentemente o médico não sabe manejar adequadamente o paciente. c- A queda no acompanhamento do paciente (visto em visitas de “segundos”, nas enfermarias), devida aos preços irrisórios de “visitinhas de enfermarias”. d- O desprezo pelo trabalho do médico clínico (aquele que só tem seu cérebro e suas mãos para trabalhar, ou seja, não tem procedimentos, cirurgias, aparelhos, etc). Médicos que “não-fazem-procedimentos”, ou seja, que só trabalham com o raciocínio, tendem a ter seu trabalho desvalorizado, isto gera uma “medicina só de exames e aparelhos”, medicina acéfala. Tudo isto precarizou tanto a enfermaria/apartamento hospitalar que a UTI se tornou uma “necessidade”. Por isto agora tudo que é Governo quer UTI, todo hospital, como o Aloísio colocou muito bem, quer UTI. Como os problemas não são mais resolvidos a nível ambulatorial (consultório), pois os Governos vêm fazendo de tudo para acabar com os consultórios médicos liberais ( fora do Governo), incha-se a UTI. Como também não se resolvem mais os problemas na enfermaria e no apartamento hospitalar (médicos apressados, mal pagos, mal formados, sobrecarregados), incha-se a UTI. Com o aumento tão grande de demanda para a UTI, esta tende a sobrevalorizar-se, e os outros serviços (ambulatórios, enfermarias/apartamentos) tendem a desvalorizar-se, num círculo vicioso (sim, círculo vicioso pois foi exatamente a falência dos ambulatórios/enfermarias que gerou a explosão da UTI). Com a sobrevalorização da UTI, os médicos tendem a mandar “tudo para UTI”, os donos de hospitais tendem a querer ganhar tudo que perderam em outras áreas hospitalares na UTI, inclusive com excesso de exames, exames caros, etc. A causa de tudo é a medicina precarizada por causa das políticas públicas governamentais. O médico apressado, sobrecarregado, incompetente, sem tempo para a relação com a família e o paciente, por sua vez, recebe muitos processos por negligência, imperícia, imprudência, ou seja, denúncias, reclamações do paciente, familiar, mídia, juízes, promotores, Conselho de Medicina, polícia, etc. Ou seja, está montado um “pé-de-guerra” contra o médico e contra o hospital (relembrando, ambos ganhando merrecas pré-falência, por causa das “políticas governamentais”). Para fugir-se disto o médico procura a UTI para esconder-se das denúncias  por trás de aparelhos, planilhas, papeladas, exames, relatórios, “acompanhamento dia e noite”. Faz isto porque esta “medicina mais exata” (e geralmente mais deletéria para o paciente) pode defendê-lo melhor de eventuais ataques...

Ou seja, fecha-se aí uma infernal e vertiginosa espiral dos horrores (“horror” principalmente para quem já teve um ente querido nas garras desta perversão).

(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra, escreve as terças, sextas, domingos - [email protected])

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