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OPINIÃO

A grande marcha do desenvolvimento

Nas últimas três décadas, a China executou políticas nacionais de industrialização ajustadas ao movimento de expansão da economia “global”. As lideranças chinesas perceberam que a constituição da “nova” economia mundial passava pelo movimento da grande empresa transnacional em busca de vantagens competitivas, com implicações para a mudança de rota dos fluxos do comércio. Os chineses ajustaram sua estratégia nacional de industrialização acelerada às novas realidades da concorrência global e às vantagens domésticas da oferta ilimitada de mão de obra.

As lideranças chinesas entenderam perfeitamente que as políticas liberais recomendadas pelo Consenso de Washington não deveriam ser “copiadas” pelos países emergentes. Também compreenderam que a “proposta” americana para a economia global incluía oportunidades para o seu projeto nacional de desenvolvimento.

O chamado “modelo chinês” tem uma relação simbiótica com as transformações financeiras e organizacionais que deram origem às novas formas de concorrência entre as empresas dominantes da tríade desenvolvida, Estados Unidos, Europa e Japão. A metástase do sistema empresarial desse trio, particularmente dos Estados Unidos e do Japão, determinou uma impressionante mutação nos fluxos de comércio.

Não se trata apenas de reafirmar a importância crescente do comércio intrafirmas, mas de destacar o papel decisivo do global sourcing, fenômeno presente, sobretudo, nas estratégias de deslocalização e de investimento que, desde a década dos anos 90, beneficiaram as economias asiáticas, a China em particular.

Ao longo dos últimos 30 anos, os chineses tiraram proveito da “abertura” da economia ao investimento estrangeiro. Mas foram as estratégias nacionais que definiram as políticas de absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias industriais e crescimento das exportações. Jamais imaginaram que sua escalada industrial e tecnológica pudesse ficar à mercê de uma abertura sem estratégia ou apenas na dependência da oferta ilimitada de mão de obra.

Por isso, a China cresceu mais e exportou ainda melhor. Conseguiu administrar uma combinação favorável entre câmbio real competitivo e juros baixos, acompanhada da formação de redes domésticas entre as montadoras e os fornecedores de peças, componentes, equipamentos, sistemas de logística.

A ação estatal cuidou, ademais, dos investimentos em infraestrutura e utilizou as empresas públicas como plataformas destinadas a apoiar a constituição de grandes conglomerados industriais preparados para a batalha da concorrência global.

Não é difícil perceber que as estratégias chinesas de expansão acelerada, impulso exportador, rápida incorporação do progresso técnico e forte coordenação do Estado foram inspiradas no sucesso anterior de seus vizinhos, sobretudo o Japão e a Coreia.

Nos últimos 30 anos os chineses tiraram proveito da abertura econômica / Crédito: iStockphoto

Os sistemas financeiros que ajudaram a erguer os antecessores da China eram relativamente “primitivos” e especializados no abastecimento de crédito subsidiado e barato às empresas e aos setores “escolhidos” como prioritários pelas políticas industriais. O círculo virtuoso ia do financiamento para o investimento, do investimento para a produtividade, da produtividade para as exportações, daí para os lucros e dos lucros para a liquidação da dívida.

A experiência chinesa combinou o máximo de competição, a utilização do mercado como instrumento de desenvolvimento, e o máximo de controle das instituições centrais da economia competitiva moderna: o sistema de crédito, a política de comércio exterior, a administração da taxa de câmbio, os mecanismos de fomento à inovação científica e tecnológica. Os bancos públicos foram utilizados para dirigir e facilitar o investimento produtivo e em infraestrutura.

O sistema financeiro desempenhou a função de orientar de forma centralizada a trajetória do desenvolvimento econômico. Funcionou como um mecanismo de alocação de capital para os setores prioritários, aqueles mais ajustados à maximização da taxa de investimento e ao adensamento das cadeias de valor. Essa dupla função foi exercida com proficiência até a eclosão da crise global.

A resposta chinesa à Grande Recessão, o megapacote de investimentos apoiado na expansão do crédito foi eficaz para sustentar a taxa de crescimento, mas progressivamente as injeções de liquidez da economia deram origem à bolha imobiliária e à atordoante disparada do endividamento do setor privado e das empresas provinciais.

A China vai enfrentar uma transição difícil. Não só está desafiada a enfrentar os desequilíbrios financeiros acumulados nos últimos anos, mas, sobretudo, decifrar os enigmas da construção da nova estratégia de desenvolvimento. Esse cometimento exige reformas institucionais em diversas áreas cruciais: o papel do setor público, a distribuição de renda, a propriedade da terra, o sistema financeiro, a internacionalização das suas empresas e de sua moeda, para não falar dos riscos envolvidos na abertura da conta de capital.

O país avança suas forças para a construção do bloco eurasiano, aí incluídas a Rússia e a Índia, e estende sua influência à África e à América Latina, não somente como fontes provedoras de matérias-primas, mas como espaço de expansão de empresas chinesas que iniciam um forte movimento de internacionalização. Está claro que os chineses ensaiam cautelosa, porém firmemente, a internacionalização do yuan ao ampliar a conversibilidade financeira de sua moeda e multiplicar rapidamente os acordos de troca de moedas (swaps) com seus parceiros comerciais mais importantes.

Essas reformas são muito mais delicadas e complexas do que aquelas implementadas nos últimos 30 anos. Isso demandará reavaliações e revisões, com avanços e recuos, dado o método experimental, por tentativa e erro, utilizado pelas autoridades chinesas. O êxito das reformas deverá consolidar a transição econômica da China de uma economia de comando para uma economia “mista” em que o mercado terá papel importante, mas sem influência na formulação das estratégias de longo prazo.

(Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, economista brasileiro - Texto publicado originalmente na CartaCapital)

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