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OPINIÃO

Equívocos governamentais

Vi  recentemente esta notificação :

“Boa tarde. Sou aluna de Medicina, pretendo especializar-me em psiquiatria em breve e tenho uma dúvida... em algum lugar desse Brasil o sistema de  internações psiquiátricas em hospitais gerais funciona plenamente bem?

Ou então, o tratamento em Caps (centros psicológicos do Governo)  consegue substituir a internação psiquiátrica nos casos mais graves?

Desde já obrigada!”

Minhas respostas:

1- Cara aluna. Em primeiro lugar, é interessante observar-se algumas estatísticas, coligidas por nós e por nosso serviço psiquiátrico acadêmico (que conta com pesquisas de mestrado e residência médica). Em primeiro lugar, com dados locais,  em dez 2014, aproximadamente 85% dos caps de Goiás não tinha médicos  psiquiatras.

2- Então aí já vem uma pergunta? Dá para fazer cardiologia sem cardiologistas? Obstetrícia sem obstetras?  Analogicamente, dá para fazer uma boa psiquiatria sem psiquiatras?

3- Talvez seja por isso que, em  outra pesquisa feita em Goiânia, 85% dos diagnósticos de esquizofrenia, advindos de Caps, estavam equivocados.

4- O centro psicológico governamental, em muitos casos, é um dispositivo ideológico-corporativista feito para alijar o médico psiquiatra. Psiquiatras costumam ser alijados, a começar dos baixos salários pagos, o que costuma atrair, de modo geral, mais recém-formados ou médicos não especializados.

5- Deste modo, de modo geral,  médicos psiquiatras são sabidamente mal-vindos ou mal-recebidos. Muitos reclamam que suas condutas diagnósticas e terapêuticas não são respeitadas ou implementadas, inclusive, acerbamente questionadas por profissionais de formação bem diferente da sua.

6- Não obstante, psiquiatria é medicina, e como tal, para casos complexos, precisa de dispositivos hospitalares.

7- A hospitalização psiquiátrica não é só “para pacientes agitados”. A gama de indicações é enorme, p.ex., elucidação diagnostica de casos difíceis (que, infelizmente, são mais regra do que exceção em psiquiatria). Por exemplo, recentemente, tivemos de internar um paciente que, após anos de tratamento infrutífero (e consequente processo demencial) num Caps – com diagnóstico de doença bipolar – mostrou-se portador de uma doença infecciosa chamada neurolues. Poderia ser uma demência reversível, caso tivesse sido diagnosticada e tratada em seu início. Hoje o paciente  transformou-se num infeliz “vegetal”.

8- Quanto os hospitais gerais, ao meu ver, estão despreparados para o atendimento da maioria dos casos psiquiátricos. As próprias estatísticas epidemiológicas mostram isso: apenas 2% dos hospitais gerais no Brasil adotaram a ala psiquiátrica, após 20 anos de ingentes esforços governamentais. Ou seja, é mais uma “lei” que o Governo faz, mas que não cola, está dissociada de nosso ambiente social, econômico, político, operacional, pragmático.

9- Como eu disse acima, grande parte dos pacientes psiquiátricos, para serem bem tratados, necessitam de coisas que um hospital geral não pode oferecer. Por exemplo, hoje, aprox. 50% dos pacientes psiquiátricos tem co-morbidade com toxicomania. Como tratar um toxicômano num ambiente completamente fechado? Só isso já dá um problemão. Como tratar um transtorno de personalidade borderline  dentro de um ambiente cirúrgico? Simplesmente não é possível.

10- Quem está de fato na prática, e não no blablablá ideológico, anti-capitalista, pró-estado, anti-hospitalar, anti-médico, sabe muito bem como é necessário, para um toxicômano, por exemplo, uma área verde, esportes, deambulação, atividade ocupacional. Nada disto existe ou é possível  em hospital geral.

11- O paciente psiquiátrico grave, grita, agita, quebra, chora alto, tudo isto é “intolerável” em hospital geral. Tem de ficar perigosamente  anestesiado lá, com todo risco de vida que isto pode implicar. Isto impede uma visão adequada da psicopatologia (é igual tratar infecção sem o parâmetro da febre, porque o paciente recebe dipirona de seis em seis horas).

12- Como você vai impedir um suicida, dentro de um hospital geral, no 7º andar? Vai colocar grades? Ora, mas vocês, os dito “humanistas”, não são contra as grades, a reclusão? Que negócio é esse? Dois pesos e uma medida?

13-  Hospitalização psiquiátrica não é local para paciente ficar “morando”. É internação aguda, emergencial, melhorou um pouquinho, dá pra ficar em casa, tem de vazar do hospital. Esta é a política adequada.

14- É muito comum receber-se um   paciente de Caps, com anos, decênios, de evolução, tudo sem diagnostico, tudo sem investigação médica - que poderia ser feita adequadamente só em ambiente hospitalar (neuroimagem, laboratório, testes neuropsicológicos, observação psiquiátrica, evolução, etc). Pacientes, p.ex., com demências tratáveis não diagnosticada (tipo. p.ex., neurossifilis, hiperparatireodismo, encefalite límbica, etc, tratados como “depressão”), pacientes fumando, engordando, tomando café, sedados dentro de casa, síndrome metabólica, hipertensos, dislipidêmicos, etc, tudo sem diagnóstico. Nestes casos, também a hospitalização psiquiátrica é necessária, mas não acontece. A política governamental atual é pela destruição de tais dispositivos de saúde.

(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra)

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