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OPINIÃO

Se a história é cíclica

Segundo o filósofo e orador romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), em seu “Historia Magistra Vitae”, a história é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mensageira da velhice. Para Cícero, conhecer a história é se deparar com as ações de várias pessoas, independentemente da distância espacial e temporal que a separam. Teria, a história, uma função pedagógica, de instruir o indivíduo a pensar acerca de seu presente e planejar seu futuro tendo como referência o passado. Coadunando com essa linha de pensamento, o historiador alemão R. Koselleck (1923-2006), afirma que a história nos deixa livres para repetir os sucessos do passado, ao invés de incorrermos presentemente nos velhos erros. As teorias de Cícero e Koselleck, negadoras de um movimento linear da história, parecem ter tido suas origens no filósofo jônico Heráclito de Éfeso (535-475 a. C.), para o qual ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois, quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou.

Para mim, as lições da história e a observação sobre o comportamento social, os instintos e a natureza humana, têm revelado uma compreensão muito diferente da desses três pensadores. Em minha expectativa pessimista, adoto a teoria do “eterno retorno do mesmo” e sugiro que o ser humano, ao longo de sua existência, promoveu e experimentou inegáveis e extraordinários avanços e evoluções no plano meramente científico e tecnológico. Se, no decorrer da longa história das civilizações, o ser humano tivesse, realmente, alcançado um nível de evolução moral e intelectual suficientes a demovê-lo de agir movido por seus impulsos e instintos primitivos ou em estado de natureza, as nações não precisariam estar em constante estado de defesa, em obcecada corrida armamentista, nem o homem continuaria a temer o outro, como sendo a principal ameaça à sua existência e ao seu patrimônio, gerando constante sensação de insegurança; também não haveria a necessidade de produção de leis e o aprimoramento do aparelho repressor estatal. O ser humano está, sim, fadado a repetir os erros do passado porque ele não evoluiu a ponto de desprender-se de seus instintos. A melhor maneira de observar e compreender a índole humana ainda é através da observação dos animais, em seu habitat natural, despojados da maquiagem enganadora das convenções sociais. A arte de fazer política conhece muito bem a alma dos indivíduos e traça as suas estratégias de atuação levando-se em conta esses conhecimentos. Dessa forma, o poder político se conserva e se mantém através do alinhamento ou adesão dos que comungam das mesmas ideias, ou através da manipulação massiva, arrebanhando ou arregimentando os sem ideias, úteis apenas como massa de manobra.

Quando, no início dos anos 1990, a população, na grande maioria a juventude brasileira, saiu às ruas para exigir a renúncia do ex-presidente Fernando Collor, todos imaginaram que agiam voluntariamente, impelidos por suas “convicções”. Eu fui um deles e comemorei no dia 29 de setembro de 1992 o aniversário de meu nascimento e a deposição de Collor. Os denominados “caras-pintadas” – uma parte deles, e neles me incluo – precisaram de quase uma década para descobrirem que foram usados e manipulados como idiotas úteis aos interesses do sistema. Já em 1993, um grupo de parlamentares, em sua grande maioria os que atuaram pelo impeachment de Collor, quando votaram, diante das câmeras “pela moralidade, pela ética, pelo Brasil, pela minha família”, conhecidos como os “anões do orçamento”, viu-se flagrado em um dos mais esdrúxulos escândalos de roubalheira no Brasil. Muitos perderam o mandato, outros foram mortos. Uma outra parte dos “caras-pintadas” continua insistindo na autoenganação e finge acreditar que realmente teve importância e força para depor um presidente da República. Vejo isso hoje se repetir nos discursos dos jovens que vão às ruas exigirem o impeachment de Dilma Rousseff ou defender a volta da ditadura militar. Talvez a juventude de hoje não sabe que o nosso maior ídolo que capitaneou as manifestações dos estudantes, no ano de 1992, pelo impeachment, foi o hoje senador da República Lindbergh Farias, um assumido admirador de Fernando Collor e, ao que parece, também seu imitador, já que é citado em diversos escândalos de corrupção, inclusive de desvios de recursos da Petrobras. Decorridos mais de 23 anos, a história se repete. Novamente, a demonstração de que o filósofo Heráclito de Éfeso equivocou-se em sua teoria. Os tempos são outros, mas a “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Ainda somos capazes de eleger os mesmos ídolos, os mesmos algozes dos nossos sonhos, os mesmos que dilaceram nossos ideais de uma nação fraterna, solidária, com justiça social e, consequentemente, um lugar melhor para vivermos. Como diz a canção, apesar da ferida viva dos nossos corações, as aparências continuam a nos enganar. Depois do resultado das últimas eleições presidenciais, tendo sido reeleita Dilma Rousseff, eclodem diversas manifestações de ódio nas quais se pedem, dentre tantos absurdos, a implantação de golpe militar no país. A elite e o segmento político reacionário não aceitam o resultado das urnas porque foi decidido pelo voto da população pobre, predominantemente das regiões Norte e Nordeste. Talvez resida aí a grande diferença de mentalidade dos manifestantes de 1992 em relação aos de agora. Os daquela época, ainda que também tivessem sido manipulados, inegavelmente eram dotados de maior inteligência. Possivelmente, por estarem mais próximos dos tempos tenebrosos de nossa história, por ainda estarem assombrados com a proximidade fronteiriça entre a ditadura militar e o período da democracia que se iniciava. Reside, nesse aspecto, a característica mais marcante dos jovens e da elite social nas manifestações atuais: a imbecilidade. E essa imbecilidade se dá tanto em relação aos que sabem o que fazem, como os preconceituosos sociais, quanto em relação aos que são absolutamente cegos e não percebem que estão sendo programados e conduzidos.

Depois de ter participado de diversos momentos da história recente do Brasil, eu não poderia imaginar que estaria vivo para ver as pessoas irem às ruas para pedirem um golpe contra a democracia e a instalação de uma ditadura militar. As atuais convulsões políticas nos dão a certeza de que a sociedade brasileira é despudorada, organicamente corrupta e, facilmente, transige e convive, em uma relação de comensalismo, com a alta criminalidade. Os valores morais são invertidos e o prestígio social e humano não são mais aferidos pela conduta ética nem pelo caráter pessoal, mas pela classe social, a proeminência política a qual pertencem e o poder econômico que ostentam. Isso fica evidenciado no trato que as classes média e alta no Brasil têm em relação aos criminosos. Se, por um lado, defendem maior rigor na repressão à criminalidade praticada pela população pobre, por outro convive, simbioticamente, com os criminosos “elitizados”. Comumente, vê-se pessoas exibindo imagens em colunas de jornais e em rede socais, sorridentes, abraçadas ou ao lado de bandidos institucionalizados, principalmente os da classe política. No estado de Goiás, onde o banditismo se apoderou das instituições públicas, tanto um famoso gangster quanto sua mulher, uma prostituta de luxo licenciada, são idolatrados e erigidos à categoria de celebridades, embora quase sempre ilustram as páginas policiais e apesar de já ter sido condenado criminalmente como chefe de organização criminosa. Essa mesma elite, logo após o resultado das últimas eleições, tentou por diversos mecanismos sabotar a vontade popular e democrática, utilizando-se, para tanto, dos mais patéticos artifícios. Inicialmente, exigiram a recontagem dos votos, alegando ter havido fraude nas eleições. Posteriormente, pediram auditoria nas urnas eletrônicas, muito embora o sistema eleitoral do Brasil seja um dos mais modernos e seguros do mundo. Não satisfeitos, passou-se a atacar a credibilidade da Justiça Eleitoral e a reputação de seus ministros. Após a mesma elite bater panelas das sacadas de seus apartamentos e sair às ruas pedindo que se instaure um golpe militar, vê-se agora empenhada em promover o impeachment da presidente da República, eleita de forma legítima, democrática e contra a qual não pesa nenhuma denúncia e sequer suspeitas de corrupção. Para a consecução desses propósitos, não sente o menor constrangimento em elegerem como herói e a ele se associarem, um bandido declarado, um cínico, um escarnecedor, um crápula e falido moral, contra o qual pesam gravíssimas acusações de roubalheira, inclusive com provas documentais e testemunhais irrefutáveis, e de já ter sido denunciado pela Procuradoria da República por, dentre outros crimes, o de associação criminosa. Esse pilantra, o deputado Eduardo Cunha, caricatamente preside um dos poderes da República, o Parlamento e, todavia, conta com a leniência e a cumplicidade da elite social no Brasil. Esse herói sem nenhum escrúpulo, perfeita tradução personificada de Macunaíma, personagem do escritor Mário de Andrade, representa a identidade da elite social e política brasileira, como ficou claramente revelado nas manifestações públicas onde confessa, descaradamente, ostentando faixas e cartazes, com expressões do tipo “somos todos Cunha”, “mexeu com Cunha, mexeu comigo”. Esse mesmo segmento de energúmenos pleiteia a renúncia ou o impeachment da presidente da República alegando, como pretexto da vez, que houve crime de responsabilidade em razão das “pedaladas fiscais”. Essas pessoas, a quase totalidade delas, com exceção dos que as manipulam, aquartelados em seus gabinetes, além de não saberem sequer escrever a palavra “impeachment” nem saber o seu significado, não fazem a menor ideia do que seja “pedaladas fiscais”. São a reprodução do personagem Chicó, de Ariano Suassuna, da obra “Auto da Compadecida” que, quando perguntado sobre alguma coisa sobre a qual está falando se limita a responder: “Saber eu não sei, só sei que é assim.”

De fato, a história é cíclica. Os idiotas, porém, deixam sérias margens de dúvidas sobre se se revelam de forma cíclica ou linear, constante e ininterruptamente. A verdade, porém, é que estão sempre a postos para repetirem os erros do passado. Talvez a única diferença é que, no momento político atual, eles vieram com força total e, ao que tudo indica, dispostos a causar um tremendo estrago.

(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – [email protected])

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