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OPINIÃO

A pílula da USP e a cura do câncer

Nos últimos meses uma celeuma foi instaurada porquanto da famigerada “pílula da USP” e sua hipotética eficácia no enfrentamento do câncer. Juízes, pacientes, pesquisadores, médicos e especialistas de toda ordem se viram envoltos em um debate que ganhou contornos hollywoodianos, e cuja essência envolve elementos muito mais complexos do que a dubitável infalibilidade do predito projeto de fármaco diante da ação desoladora das neoplasias malignas.

O imbróglio foi instituído a partir de decisão prolatada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, que acompanhando o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo, e contrariando as normas técnicas a respeito da homologação de medicamentos, assim como a “opinio communis doctorum”, expediu ordens judiciais para a fabricação continuada da substância experimental de modo a garantir o acesso da fosfoetanolamina sintética para aqueles pacientes que a reclamavam em juízo.

A notícia espalhou-se como rastilho de pólvora, principalmente através das redes sociais, proporcionando o convencimento de grande parte da população que passou a acreditar na cura da indesejável moléstia.

O fato é que a “pílula da USP” não é medicamento, e nem mesmo é da USP. O esboço de droga não foi submetido aos rigores dos ensaios clínicos previstos em lei, imprescindíveis para atestarem sua segurança e eficácia, e indispensáveis para registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), e para sua posterior comercialização. E a Universidade de São Paulo já se manifestou, através do Instituto de Química de São Carlos, que não possui o acesso aos elementos técnico-científicos necessários para a produção da substância em tela, cujo conhecimento é restrito ao Prof. Dr. Gilberto Orivaldo Chierice, atualmente aposentado, e à sua equipe, por ser protegido por patentes. Explicou, ainda, que a fosfoetanolamina foi estudada de forma independente pelo referido professor, contando inclusive com a participação de pesquisadores que não possuíam vínculo com a Universidade.

Tal fato nos causa estranheza, pois após o advento da Lei de Inovação (Lei nº 10.973/ 2004), e que foi recentemente modificada pela Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016, que dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação, cada instituição buscou legislar da sua maneira com relação à distribuição dos resultados financeiros da patente. Pesquisador, o financiador da patente, o titular e a instituição, agência de fomento, universidade ou departamento, estão todos envolvidos no processo e devem ter participação nos lucros das potenciais descobertas.

Levantamento recente demonstrou que a USP retém 50% da patente gerada na instituição, sendo 25% para o departamento e 50% para o inventor; se for uma equipe, o líder decide o critério de distribuição. Se a patente for gerada numa pesquisa financiada por agência de fomento, estabelece que 50% ficam para a agência e a USP, sem especificar percentuais para cada uma - e 50% para o inventor.

No caso em tela, como a pesquisa da “pílula” se deu nas dependências da USP, utilizando recursos humanos, administrativos e financeiros de ordem pública, o certo seria que a USP estivesse envolvida no processo de proteção da referida propriedade intelectual, e não apenas os pesquisadores. Divergências relacionadas com a patente da fosfoetanolamina, e seu possível licenciamento, tendo em vista produção em larga escala por um laboratório público, foram suscitadas pelos cientistas para que uma possível parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), aventada em 2013, não lograsse êxito. Ainda não restou claro, destarte, por que os detentores da patente farmacêutica estariam resistentes em licenciá-la para um laboratório público, que poderia produzi-la em larga escala, sem visar o lucro, no caso, claro, de os ensaios clínicos comprovarem a segurança e eficácia do potencial medicamento.

Mas enfim, para tentar mitigar os efeitos deletérios provocados pelo alvoroço midiático, o Ministério da Saúde criou um Grupo de Trabalho, para apoiar os estudos clínicos e a posterior produção da fosfoetanolamina sintética. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) vai investir R$ 10 milhões nas pesquisas, e o governo do estado de São Paulo e do Rio Grande do Sul já disponibilizaram sua estrutura de laboratórios e hospitais para que a pesquisa seja empreendida.

Atualmente, o projeto de pesquisa clínica proposto pelo governo paulista para os testes da referida substância encontra-se em análise pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, do Conselho Nacional de Saúde (CONEP/CNS), órgão responsável em averiguar se os procedimentos propostos asseguram os direitos dos pacientes a serem submetidos aos testes. Toda e qualquer pesquisa clínica que conte com a participação de seres humanos deve passar pelo crivo exordial da CONEP.

Em estágios progressivos, mil pacientes deverão ser submetidos aos testes, que serão acompanhados por uma equipe multiprofissional especializada, no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp). Os pacientes serão selecionados em dez grupos com diferentes tipos de tumores: cabeça e pescoço, pulmão, mama, cólon e reto (intestino), colo uterino, próstata, melanoma, pâncreas, estômago e fígado.

As pesquisas laboratoriais iniciais empreendidas pelo Dr. Chierice e sua equipe, bem como por pesquisadores do Instituto Butantã, em animais e em células humanas, foram promissores, mas ainda rudimentares e incipientes. A comunidade científica é cética quanto à existência de uma única droga para combater os mais de 100 tipos de neoplasias. Além do mais, os pesquisadores da fosfoetanolamina sintética estão sendo criticados por parte da comunidade acadêmica, por atropelarem, segundo eles, os demais cientistas que estudam substâncias contra o câncer, provocando o apelo midiático para angariar mais fundos do governo federal, de forma antiética.

O presidente do STF, Ministro Ricardo Lewandowski, no início de janeiro desse ano, pediu informações ao Instituto Nacional de Câncer (INCA) sobre a eficácia da fosfoetanolamina para o tratamento do câncer. Em seu despacho, Lewandowski levou em conta que a substância ainda não tem registro na ANVISA, nem em outros países, com o fim de que se avaliem os riscos de seu uso contínuo à saúde humana. Tal consulta se faz necessária, uma vez que a Suprema Corte analisa diversos casos semelhantes, e uma decisão poderá determinar a obrigatoriedade, e até mesmo a possibilidade ou não de o Poder Judiciário determinar o fornecimento da referida substância.

A despeito de toda essa controvérsia, o fato é que a “pílula da USP” será agora submetida ao crivo rigoroso dos ensaios clínicos, e é óbvio que todos esperam que o epílogo dessa história seja auspicioso. Mas, por enquanto, no presente momento, aos olhos da ciência, a fosfoetanolamina é apenas um esboço de fármaco, que poderá ou não ter sua eficácia comprovada no futuro. Mas suas suscitadas propriedades curativas em relação ao tão ominoso carcinoma, nesse ínterim, são tão questionáveis quanto aquelas apregoadas pela Garrafada Sangue de Dragão, tão consagrada na região amazônica.

E quando falamos de poções, beberagem e garrafadas, devemos levar em consideração que o paciente não pode ser considerado como resultado somente de alterações físico-químicas que norteiam seus parâmetros somáticos, até então desvendados. Conjugam-se também os aspectos psicossociais, que produzem muitas vezes ações mais benéficas. O homem, em determinados momentos, apega-se a crenças e a todo tipo de esperança que possa proporcionar a cura de uma grave doença.

O fato é que, muito mais importante do que debater sobre o apelo midiático de projetos de fármacos, ou sobre o efeito miraculoso de determinados preparados, a sociedade deveria concentrar-se na discussão de mecanismos que aprimorem o acesso a medicamentos seguros, eficazes, de qualidade, e a preços acessíveis.

Isso porque está chegando no mercado uma nova classe de medicamentos, os chamados imuno-oncológicos, tais como o Ipilimumab e Nivolumab, cujo tratamento anual é estimado em algumas centenas de milhares de reais por paciente. Estes sim, já com sua eficácia comprovada, mas vendidos a preços exorbitantes pela indústria farmacêutica. É notório o fato de que tais companhias, em suas sanhas capitalistas, não medem esforços para majorarem seus lucros. Dividendos esses que são, em grande parte, reinvestidos em ações de marketing, a maioria destinada à classe médica. Passagens áreas, diárias, jantares e bugigangas em geral são utilizados como “mimos”, com o propósito nefando de seduzir a classe prescritora, que acaba se tornando divulgadora de excelência para seus produtos. É importante frisar que nem todos representantes da classe médica se entregam a essa relação de promiscuidade, se comportando dentro das premissas éticas que tutelam a profissão médica. Mas enquanto alguns refestelam-se em jantares e congressos, devidamente patrocinados pela indústria farmacêutica, a conta final acaba sendo paga pelo tão combalido Sistema Único de Saúde (SUS), que se vê muitas vezes compelido a fornecer tais medicamentos, principalmente através de processos de judicialização.

Preocupado com tal situação, que se replica basicamente em todos os países em desenvolvimento e de menor desenvolvimento relativo, o Secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, nomeou recentemente 15 especialistas que deverão compor um painel de alto nível sobre Tecnologia, Inovação e Acesso à Saúde, e que irá analisar inovações tecnológicas, pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos, e como torná-los acessíveis à população.

Percebemos, assim, que a discussão em tela não deveria concentrar-se nos hipotéticos efeitos miraculosos da “pílula da USP” no combate ao câncer, e sim nos mecanismos e alternativas para que os medicamentos que já existem no mercado, e têm eficácia comprovada, mas comercializados a preços estratosféricos, se tornem de fato acessíveis à população.

Na ânsia de concluir, lembremos de Martinho Lutero, avatar da reforma protestante, que cunhou a máxima: “A ciência sem fé é loucura, e a fé sem ciência é fanatismo.” Resguardado o direito individual dos pacientes que, arrimados na fé, buscam outras vicissitudes para seus males, quando a ciência já não oferece alternativas terapêuticas, que nos concentremos mais na virtuosa luta pelo acesso a medicamentos seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis, de modo a garantir a todos o mais alto nível de bem-estar físico, mental e social.

(Jordão Horácio, advogado e membro da Comissão de Políticas Públicas e Processo Legislativo da OAB/GO. Graduado em Direito pela UFG, e Relações Internacionais pela PUC, é especialista em Direito Internacional pela UFG, mestre em Saúde Global e Diplomacia da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz, e Doutorando em Saúde Global e Sustentabilidade pela USP. Também atua como Técnico Especializado junto ao IPHAN/GO - [email protected])

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