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OPINIÃO

Algo ‘hay’

A crise cria oportunidades. Ou o caos.
“Nos EUA, a desigualdade vem piorando rapidamente. Em 1978, a faixa de 1% da população mais rica era dez vezes mais rica que o restante do país. Hoje, a renda média do 1% no topo é 30 vezes maior que a dos demais 99%. Nos EUA, a desigualdade de renda aumentou de forma constante tanto em governos democratas quanto em republicanos. A mobilidade social nos EUA (e em outros países) vem diminuindo, o que corrói a fé no ‘sonho americano’, inclusive na crença de que o trabalho árduo permite chegar a uma situação melhor do que a dos pais. Nos últimos 30 anos, a probabilidade de uma pessoa nascida nos EUA na faixa dos 25% com pior renda terminar sua vida no quartil superior caiu em mais de 50%.
O aumento da desigualdade alimenta o mal-estar político, uma vez que os cidadãos veem suas perspectivas piorarem. Notícias de que apenas 158 doadores de alta renda forneceram metade de todas as contribuições na primeira fase do ciclo da eleição presidencial dos EUA em 2016 ressaltam a preocupação de que a desigualdade de renda pode levar a uma desigualdade política. Ainda que o quebra-cabeça da iniquidade possa parecer complicado hoje, deixar de solucioná-lo pode levar a problemas muito mais graves” (O Quebra-cabeça da Desigualdade, Dambisa Moyo, Valor Econômico, 19.02.16, A15).
A notícia mais importante hoje nos Estados Unidos é um candidato à presidência que se apresenta como socialista, sem temores, com orgulho de sê-lo, e pede uma revolução política no país, utilizando essa expressão em cada um dos seus atos eleitorais. “Está causando um tsunami eleitoral semelhante ao que ocorreu na Espanha com o Podemos, ou com o candidato trabalhista britânico Jeremy Corbyn” (Vicenç Navarro, Publico.es).
Trata-se de Bernie Sanders, que vem disputando palmo a palmo a indicação de candidato a presidente pelo Partido Democrata com a toda poderosa Hillary Clinton, esposa de um ex-presidente, ex-ministra de Relações Exteriores de Obama.
Por que surge um fenômeno como o de Sanders neste momento? “O surgimento deste movimento antiestablishment nos Estados Unidos tem características ao que sucede na Espanha e no Reino Unido e responde a uma situação comum nos três países: as classes populares estão cansadas do conchavo entre os interesses econômicos e financeiros das grandes empresas, que constituem a classe corporativa, por um lado, e as instituições representativas desses mesmos interesses por outro, as mesmas que se tornaram meros instrumentos de tal classe. Tal situação foi possível devido à privatização do processo eleitoral nos Estados Unidos, onde todo candidato a um cargo político pode receber todo o dinheiro que sua campanha puder arrecadar, e financiar suas campanhas através dos chamados Super PACs, que permitem que se comprem todos os espaços televisivos que quiser, sem que exista nenhuma regulação a tais meios. A maioria dos fundos que a classe política recebe provém das grandes empresas, do 1% mais rico da sociedade, os que controlam também a maioria dos meios de informação e persuasão do país” (Vicenço Navarro). Alguma semelhança com o Brasil?
Quem é Bernie Sanders? Segundo Dave Lindorff (CoiunterPunch), o senador Sanders, pelo Estado de Vermont, é um veterano dos movimentos sociais, “não apenas alguém como Obama, que supostamente teve um pequena experiência como líder comunitário”. Toda vida política de Sanders, desde a militância estudantil, remonta a uma luta por mais igualdade, em defesa dos pobres, das minorias, da classe trabalhadora. “Podemos criticar o seu apoio, como membro do Congresso, à maioria das políticas imperiais do governo dos EUA no exterior, e até mesmo à maior parte das guerras ilegais tocadas pelos EUA, mas, ao menos internamente, é marcante e inatacável seu apoio à luta por justiça racial e econômica, pelos direitos dos trabalhadores e pela igualdade das mulheres.”
As principais propostas do programa de Bernie Santos têm a ver com sua trajetória e com o que se está passando hoje nos EUA. A primeira: romper com os grandes bancos, dividindo-os em unidades menores. Uma de suas frases é: “A cobiça de Wall Street está destruindo a economia americana”. Segunda: fazer um investimento massivo em obras públicas, facilitando a transição de fontes de energia, passando de uma matriz baseada em combustíveis fósseis a uma volta a fontes renováveis, com o que se criariam 13 milhões de postos de trabalho. Terceira: estabelecer uma reforma mais profunda que a de Obama, para garantir a universalidade do acesso ao sistema (hoje nos EUA há mais mortes por falta de acesso à saúde que pela AIDS). Quarta: realizar reformas permitindo o acesso a todos os níveis do sistema educativo, das escolas infantis às Universidades. (O acesso aos centros de educação infantil e escolas de ensino fundamental e médio tem diminuído entre as classes populares de forma bastante evidente, especialmente devido ao encarecimento das mensalidades.)
Para Tomas Piketty, autor do best seller ‘O Capital no Século XXI’, “estamos testemunhando o fim do ciclo político-ideológico aberto pela vitória de Ronald Reagan nas eleições de novembro de 1980”, e indica que uma revolução popular está a caminho. “O sucesso de Sanders mostra que hoje grande parte da América está cansada da crescente desigualdade social e quer reviver tanto a agenda progressiva quanto a tradição americana de igualitarismo do passado.”
Não se sabe o que vai acontecer nas eleições americanas, mas se sabe o que já aconteceu na Grécia com o Siryza, na Espanha com o Podemos, no Reino Unido com o Partido Trabalhista, onde a esquerda ganhou as eleições ou cresceu enormemente, com programas à esquerda, de enfrentamento da crise, da banca e da crescente desigualdade.
Algo ‘hay’. As pedras estão se movendo. E quando as pedras se movem a partir dos jovens, como no Brasil desde junho de 2013 e como nos EUA em apoio a Bernie Sanders, o novo fatalmente acontecerá, mais cedo ou mais tarde.
Estará chegando a hora do Brasil? Para onde soprarão os ventos e as pedras vão rolar?

(Selvino Heck, diretor do Departamento de Educação Popular e Mobilização Cidadã – Secretaria Nacional de Articulação Social. Secretaria de Governo da Presidência da República)

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