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OPINIÃO

Análise psiquiátrica do assediador de Ana Hickmann

Rodrigo Pádua, 30 anos, estava “perseguindo” pela internet a apresentadora/modelo Ana Hickmann há vários meses. Em algumas ocasiões chegou a achar que estava sendo correspondido. Por fim invadiu seu quarto de hotel em Belo Horizonte , xingou-a, ameaçou-a, atirou na ajudante dela; aparentemente foi executado com dois tiros na nuca ( alega-se “legítima defesa” do segurança, cunhado de Ana) .

O jornal Correio Brasiliense, em 23/5/16, entrevista um psicólogo, coordenador de curso universitário de psicologia em MG. Este diz: “É incomum que alguém que ame uma pessoa possa atacá-la. Por isso precisamos afastar a ideia, que muitas vezes é disseminada, do louco perigoso. Em 99% dos casos de psicose não ocorrem atos de periculosidade. As paixões por ídolos não levam à violência. Quando alguém coloca em prática o seu delírio “os especialistas” chamam isso de “passagem ao ato”.

Bem , vamos começar a discussão destas afirmações pelo final, ou seja, pelo conceito de “passagem ao ato”. Este conceito, ao contrário do que diz o psicólogo, não é aplicado à psicóticos, e sim aos “desquilibrados psicopatas”, conforme Henri Ey, Tratado de Psiquiatria, Ed. Toray, pag.331, capitulo “Los desequilibrados”. Ey cita explicitamente :Vários autores, p.ex., Cadwell, Rodgers, Trillat, atestam que a “passagem ao ato” é uma conduta haloplástica- ou seja, voltada para os demais, para o externo – ao passo que a conduta autoplástica, contrária a esta, é voltada para o próprio indivíduo, como se vê nos neuróticos e psicóticos (ou seja, delirantes). Portanto, ao contrário do que diz o psicólogo, e como mostra abalizada literatura médica psiquiátrica, o termo “passagem ao ato” aplica-se a estruturas psicopatológicas do tipo “psicopático” (“personalidades psicopáticas”) e não do tipo psicótico, delirante, ou neurótico.

As incongruências da afirmação do profissional da psicologia não terminam por aí. Ele diz que Rodrigo Pádua é pretensamente delirante, portanto “louco”, mas que nem todos os loucos, só 1% deles (não sei como conseguiu esta estatística) o é. É, provavelmente, uma estatística da cabeça do profissional, pois, em ensaios clínicos modernos, dificilmente haverá uma figura clínica tão ampla como “psicóticos” (isto não é uma doença, não é um substantivo, é um adjetivo), os tais 99% sem riscos. No hospital psiquiátrico onde trabalho, há 35 anos, a estatística de pacientes agressivos é enormemente maior, no âmbito de várias patologias mentais, e é um enorme desserviço (e perigoso) afirmar-se que doentes psiquiátricos graves não sejam perigosos. É exatamente por pensarem assim que os familiares de Rodrigo parecem não ter-se incomodado, ou não tê-lo incomodado, apesar de seu comportamento altamente psiquiátrico anterior (“parar de trabalhar”, “parar com tudo”, “ficar o dia todo no quarto”, “ficar obcecado com a modelo”, etc). Presta um enorme desserviço à população, tanto o profissional quanto o veículo de informação que diz que não devemos nos incomodar muito com a periculosidade de pacientes psicóticos. Pelo contrário, como eu já disse, a agressividade é fenômeno clínico muito comum em doenças psiquiátricas, e vemos isto estampado nas capas de jornais todos os dias, infelizmente da maneira mais tenebrosa. No Brasil, de fato, o que há é uma subnotificação , subinformação, e conseqüente subtratamento de doenças psiquiátricas graves. Inclusive, grandes jornais, “boa imprensa”, não sabe diferenciar o que é um problema psicológico de uma doença psiquiátrica estabelecida, confundido perigosamente as duas, e confundindo juntamente a população... Por que nunca chamam um psiquiatra, um médico, para falar de “testes psicológicos”, mas sempre chamam psicólogos para falarem de doenças psiquiátricas? Seria uma certa “psiquiatro-fobia” que permeia toda sociedade brasileira?

Aliás, fosse o profissional consultado um psiquiatra, facilmente teria feito o diagnóstico de uma síndrome de Clerambault, ou distúrbio erotomaníaco, claramente manifesto nos sintomas: crença delirante de ser amado, crença de que está sendo correspondido, crença de que o objeto de sua paixão é “culpado” de alguma forma pelo despertar e manutenção do sentimento, crença de que o objeto tem de ser seu, atuação psicótica de seu delírio de ser amado, etc. É uma síndrome esplendidamente estudada pelo psiquiatra francês Gaetan de Clérambault, logo no início do século XX, conforme pode ser compilado em seus geniais e eméritos escritos (“Oeuvres Psychiatriques”, Ed. PuF, Paris, 1942 ). O médico francês perfila a erotomania com outras várias “psicoses passionais”, tais como os idealistas , os fanáticos, os querelantes, os reivindicatórios, os regicidas. O tratamento envolve medicação adequada, p.ex., normotimicos, antipsicóticos, eventualmente antidepressivos/antiobsessivos serotoninergicos de uso pontual e breve (usos prolongados, intensivos e não acompanhados por outras medidas podem piorar a condição), além de postura psicoterápica por parte do médico psiquiatra. Portanto, mais uma vez, fosse o entrevistado um psiquiatra, como deveria ser, seguramente saberia destas informações, ao menos por alto.

Tais psicoses passionais, como diz Clérambault, são um “exagero da afetividade fisiológica”, exagero este que muitos estudos, hoje, mostram ligados à depressão e à doença bipolar. Sem tratamento o desfecho, ao contrário do que diz o psicólogo, é comumente sério, com perseguições, ataques, assassinatos, escândalos, difamações, injúrias, etc. Ao contrário do que diz o psicólogo, o quadro é tão comum que a psiquiatria forense americana até lhes cunha um nome, “stalkers”. Também, ao contrário do que diz o psicólogo, mais uma vez “confundindo as bolas”, erotomania não é “amor normal”, e o próprio profissional consultado entra em contradição flagrante ao dizer que quem ama não mata, para logo após diz que o amor é o de um delirante (“louco”). Ora, um amor delirante não é um amor normal, e portanto, ao amor patológico não se aplica o epíteto do “quem ama não mata”. É um desserviço do jornal e do profissional “desinformar” as pessoas deste jeito. A síndrome de Clérambault é doença psiquiátrica grave, que, quando diagnosticada, deve ser submetida a rigoroso tratamento, às vezes até com hospitalização, sob o risco de ter-se um desfecho fatal como este. O diagnóstico médico é imprescindível , senão muitos destes pacientes serão submetidos apenas a tratamentos com psicólogos, temerosas procrastinações que tenderão a piorar a doença e propiciar-lhes um êxito muitas vezes letal, ou com suicídio ou com homicídio. Esconder o problema, ou eliminá-lo como um caso de polícia ou de distúrbio criminoso de caráter, com dois tiros na nuca, não é política médica satisfatória. O satisfatório é o diagnóstico e tratamento temporâneo.

(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra)

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