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OPINIÃO

O franciscano destemido

Dom Paulo Evaristo Arns tem um papel importante na minha vida. Doce e enérgica personagem, culta e desassombrada, acaba de celebrar seu jubileu de ouro no cinquentenário da ordenação episcopal (leia a reportagem de Miguel Martins e o comentário de Nirlando Beirão nesta edição).

Desde o dia em que conheci dom Paulo, tive por ele admiração e carinho. Tempos ásperos de ditadura, costumava visitá-lo no seu sobrado do Sumaré, para conversar sobre o Brasil sitiado pelo exército de ocupação e, em geral, sobre as coisas da vida. Quando o general Ednardo D’Avila Melo assumiu o comando do II Exército, dom Paulo me contou ter recebido o quatro-estrelas. “Pareceu-me bem-intencionado”, comentou. Tempos depois, admitiu: “Não era”.

A amizade de dom Paulo me confortava. Dirigia então a redação da revista Veja, submetida a censura feroz e nem sempre me permitia sorrir. Ao cardeal confessava minha angústia, ele me convidava a considerar quantos ensinamentos eu poderia extrair da situação adversa. Devo-lhe ter entendido que mesmo uma miúda informação, despercebida pelas tesouras censoriais, representava um legado para o futuro. De fato, deveria representar, mas reconheço que também me enganei. Naquele tempo, entretanto, de súbito ganhei uma fé inabalável. A ilusão, às vezes, é de enorme ajuda.

Dom Paulo foi defensor altamente qualificado dos presos políticos, e nesta sua advocacia dos Direitos Humanos amiúde tomou o rumo de Brasília para recorrer à intercessão do general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil do ditador Ernesto Geisel, sabidamente contrário à tortura. O cardeal carregava para aquele gabinete do Palácio do Planalto listas de desaparecidos e não arrefecia na insistência da sua peroração. Em uma entrevista que fiz com ele para CartaCapital na sua primeira versão, mensal, dom Paulo contou que certo dia Golbery caiu em lágrimas, condoído e envergonhado pelo seu relato.

Ao deixar o arcebispado de São Paulo ao completar 75 anos, dom Paulo tornou-se inquilino de um próprio da Igreja, em meio a árvores sussurrantes, atrás do Museu de Arte Sacra. Lá fui visitá-lo mais de uma vez. Observei em uma delas: “O senhor está em forma excelente”. Sorriu, disse: “Eu me cuido”. E levou-me até um pequeno cômodo apinhado de aparelhos de ginástica. Em outra ocasião, proporcionou-me uma cena hilariante. Falava-me de um encontro mais ou menos recente com João Paulo II, e não deixou de imitá-lo com tarimba teatral.

O papa já não era o vigoroso ex-esquiador que fez sua primeira viagem ao Brasil em 1980. Muitos anos depois, dom Paulo esteve com um pontífice combalido, frágil desde o atentado ocorrido anos antes, fala arrastada, marcada pelo forte sotaque polaco, cabeça pensa como se lhe saísse do meio do peito. O imitador foi fiel ao modelo, de quem não perdoava certas prepotências cometidas contra a Igreja latino-americana, a leniência com a Cúria Romana e o apoio dado a monsenhor Marcinkus no comando do IOR, o banco destinado até à lavagem de dinheiro mafioso, disfarçado do Instituto das Obras da Religião.

Passagem importante da minha existência de jornalista e de cidadão envolve dom Paulo. Outubro de 1975, a equipe de jornalistas da TV Cultura, comandada por Vlado Herzog, é acusada de subversão vermelha, e convoca a atenção dos esbirros da ditadura. Um dos colegas do grupo, Luis Weis, procura-me na Veja. Pede emprego, e não hesito em atendê-lo. Menos de duas semanas após, madrugada de fechamento, somos alcançados pela informação de que Vlado será entregue ao DOI-Codi de manhã, sábado 25 de outubro.

Entendo que a sorte de Weis também está selada e faço algumas ligações em busca de negociação. Sem êxito. Telefono para dom Paulo. O governador nomeado, Paulo Egydio Martins, está em viagem e o cardeal incumbe-se de localizá-lo. No começo da tarde, dom Paulo me transmite o seguinte recado do governador: “Siga imediatamente para Santos e ali encontre o secretário da Segurança, coronel Erasmo Dias, no Estádio da Vila Belmiro, e peça que volte para São Paulo para assumir o controle da situação”. Serei breve: executei a tarefa, não encontrei o coronel, ausente da Vila há duas semanas. Naquele mesmo instante Vlado já fora assassinado sob tortura na masmorra do terror de Estado.

Ao receber a mensagem de Paulo Egydio, que pacatamente o cardeal me transmitia, eu comentara com a devida rapidez de reflexos: “Dom Paulo, pelo amor de Deus, se me apresento ao coronel Erasmo, ele me prende”. Ouvi a seguinte resposta: “A mensagem é essa, quanto a Deus, deixe-o em paz, eu entendo bem mais dele do que você”. Acho que disse “d’Ele”.

(Mino Carta, diretor de redação, fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital e criou o Jornal da Tarde - Texto originalmente publicado na CartaCapital)

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