É madrugada alta. No Hospital São Salvador, em Goiânia, deitado num leito da unidade de tratamento intensivo, um homem olha em seu redor as paredes brancas, o soro que pinga em silêncio no seu organismo, o aparelho que marca as irregulares batidas do seu coração são, neste momento, as suas únicas companhias. De quando em quando, sussurros que vêm do corredor, indicam o corre-corre dos médicos e das enfermeiras em constante luta contra a morte.
De repente, um foco de luz, baixando do cenário principal, se detém no alambrado dos pés da cama, onde podemos ver o nome do paciente: José Rodrigues de Queiroz (Zé Gordo), ex-prefeito de Cristalina. Abaixo, o diagnóstico: trombose; data da internação: 1º de junho de 1987: médico: Anis Rassi; quadro clínico: irreversível.
O foco de luz volta-se para o homem. No fundo as paredes muito brancas do hospital. Sobre a cabeceira, um frasco com soro deixa cair, preguiçosamente, gota a gota, os últimos alimentos da sua esperança de vida. Entra uma enfermeira, mede a pressão do paciente, ajeita-lhe a cabeça no travesseiro, balança a cabeça, em sinal de desânimo e sai do quarto. Zé Gordo está, de novo, inteiramente só.
Enfarte quase fatal. Trombose fatal, sente o homem. Uma e outra doença causada pela incompreensão dos homens, pela ingratidão dos falsos amigos, pelas perseguições políticas. Prefeito de uma cidade de interior, na verdade, José Rodrigues de Queiroz jamais se afinou com os métodos políticos usuais. Naquele mundo de falsos Cristos e de Judas verdadeiros, daquela gente que busca o poder a qualquer preço, que persegue os inimigos, que trai os amigos, que vende consciências, nunca houve lugar para ele. Prefeito, durante seis anos, muito pouco pudera fazer pelo seu povo; arrecadações ínfimas, governo central alheio às suas postulações, com a saúde abalada vitimado pelo enfarte, tornaram-no em um náufrago do poder, entregue à sanha voraz dos tubarões.
Sim, pensava o homem. Cometera erros políticos graves: não usufruíra do cargo em proveito próprio, não recebera comissões pelas obras que realizara, não aceitava a presença dos bajuladores, em busca de cargos e honrarias. Mas houve um erro maior. Pressionado pelos donos do poder da época, não teve outra alternativa senão ceder às pressões – para que o seu município tivesse obras, e o povo cristalinense tivesse benefícios, para que saísse daquele ostracismo em que estava mergulhado, aderiu às forças situacionistas, acompanhando o deputado estadual João Felipe. Mas esse não foi o maior erro; este aconteceu quando comunicou aos chefes políticos da sua sigla PMDB, o acordo que estava fazendo, com a ressalva de que só o fazia para salvar Cristalina do marasmo administrativo. Esse, o erro fatal.
Embora com foros de grande Estado, em matéria de política, Goiás tem muito ainda a conquistar. O acordo e seus termos logo chegaram aos ouvidos do governo; começou, então, uma perseguição violenta ao prefeito que aderira; campanhas de desmoralização pública, acusações levianas, os olhares de desconfiança do povo, as humilhações, o descrédito, o fim político. Do outro lado, seus companheiros de partido do PMDB, omitiam-se aconselhando-o que esperasse o resultado das urnas em novembro de 1982. Quando estas falaram, quando o seu partido assomou ao poder, nada mudou para ele; continuou no ostracismo, na mesma situação em que se encontrava agora, sem amigos à sua volta, sem os falsos tapinhas nas costas, sem ninguém. O quarto vazio, as paredes brancas, o soro pingando em silêncio, o tic-tac do aparelho que marca os seus últimos momentos de vida, são seus únicos companheiros.
Durante dias e dias, do seu leito de hospital, “o velho político” esperou – seus olhos estavam constantemente fixados na porta de entrada do quarto. Por ali entrariam deputados, senadores, vereadores fiéis a ele, amigos de muitos anos, alguém do povo. Mas, quando a porta se abria só vinham os mesmos de sempre: seu filho, e Elza, sua companheira de quase meio século de carinho e compreensão. Dos seus companheiros de outrora, dos líderes políticos, um ou outro, de quando em quando, no resto, nada mais. Mas, pensava o homem, estes valiam por todos; eram o seu lenitivo, o bálsamo que aliviava suas dores, o sol da sua esperança para o novo dia, a vida continuando, a paz baixando sobre ele. E o homem sorriu para a morte, com apenas 55 anos de idade.
PERFIL BIOGRÁFICO
José Rodrigues de Queiroz nasceu em 14 de janeiro de 1929, filho de Daniel Rodrigues de Queiroz e Henriqueta Andrezina de Jesus.
Conhecido por Zé Gordo, era natural de Cristalina – Goiás, casado com dona Elza de Paiva. Fazendeiro, sócio do empresário Chaud Sales na fábrica de manteiga Monte Castelo em cristalina, proprietário de garimpos de cristal de rocha no município de Cristalina.
Na zona rural, Zé Gordo era dono de duas fazendas, pioneiro no plantio de café na região, com Lutz de Paiva Cosac, Salvador Amado dos Santos, Brasil Ubirajara Cosac e Francisco Jorge.
Em 1976, após várias insistências do ex-governador Pedro Ludovico Teixeira, ingressou na vida pública, candidatando-se a prefeito de Cristalina, pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), enfrentando o partido da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido que dava sustentação a Revolução de 1964.
Zé Gordo se elegeu, ganhando de dois candidatos da ARENA, fez uma administração voltada para o povo, derrotando um grupo econômico que governou aquele município por mais de 30 anos. Ainda assim sem apoio dos governos estadual e federal, conseguiu levar para a cidade duas agências bancárias: Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, pavimentou várias ruas, construiu 1.500 Km de estradas vicinais no município, pontes, instalou a primeira feira ruralista da época, hoje Feira Agropecuária, reformou o hospital municipal da cidade, adquiriu ambulâncias, maquinários novos para a prefeitura.
José Rodrigues de Queiroz enfrentou uma oposição mesquinha e refratária. Sofreu um infarto, onde foi obrigado a submeter-se a uma cirurgia em São Paulo para implantação de quatro pontes de safena no coração. Para prorrogar a licença do afastamento do cargo foi obrigado a impetrar o mandado de segurança pois a Câmara Municipal negou a prorrogar a licença protelando para uma próxima reunião. Ganhando na justiça, conseguiu mais tempo para fazer o tratamento. Quando retornou ao cargo, era um homem muito doente, ainda assim conseguiu finalizar o seu mandato. Morreu em Goiânia, no dia 06 de junho de 1987, aos 55 anos de idade, deixando a viúva Elza e o filho Luiz Alberto de Queiroz.
(Luiz Alberto de Queiroz é advogado e escritor, autor dos livros: O Velho Cacique (sobre Pedro Ludovico, 8ª edição esgotado), Marcas do Tempo (de Getúlio Vargas a Tancredo Neves, 3ª edição esgotado), Olímpio Jayme – Política e Violência em Tempos de Chumbo, 1ª ed. – esgotado)