Da semana passada, a notícia mais curiosa foi a do cirurgião de Birmingham que, em 2013, gravou com um aparelho cirúrgico suas iniciais nos fígados a serem transplantados para pacientes cujos órgãos tinham deixado de funcionar. O caso veio à tona quando um dos pacientes precisou submeter-se a nova cirurgia; assim que se teve visão das vísceras expostas, o outro médico deparou-se com as inusitadas letras. Em mim, a leitura da notícia sobre o processo judicial resultante desencadeou lembranças e associação de ideias.
Quando trabalhava como relojoeiro, eu gravava minhas iniciais, com a data, no fundo dos relógios consertados. O objetivo era, em caso de retorno do cliente, o de determinar, com toda certeza, se devia ou não honrar a garantia de seis meses, que era de praxe. Dessa forma, centenas de relógios circularam na década de 1980 (circulam ainda?) com as minhas iniciais, sem que seu proprietários soubessem disso. Não me consta que um cirurgião precise dar garantia dos transplantes que faz, e terá certamente métodos precisos para controlar os pacientes que levam consigo fígados alheios.
Talvez o Dr. Zorro se sentisse muito orgulhoso dos transplantes que fazia e, segundo se sabe, eram muito bem-sucedidos. Sendo a Medicina uma Arte – não há médico que o negue – o cirurgião britânico não resistiu ao impulso de assinar as suas obras. Fazia em corpos vivos o que Lima Prado, personagem de Rubem Fonseca em A grande arte (1983), fazia em corpos mortos, movido, neste caso, por um declarado impulso “autoral” de serial killer. É provável que o médico compartilhasse com a personagem de ficção o prazer sádico de exercer um poder arbitrário sobre corpos inertes. Em breve conto, Moacyr Scliar ressuscitou o usurário Shylock, personagem shakespeariana, transformando-o em cirurgião muito bem-sucedido, que, porém, pesava escrupulosamente todos os tumores por ele extirpados, ficando estranhamente eufórico quando pesavam exatamente um quilo. Dr. Shylock, com sua extrema perícia, fazia suas cirurgias praticamente sem derramar sangue. Formado em Medicina, Scliar insinuava assim que, com suas peculiaridades, o exercício de sua profissão poderia prestar-se à satisfação de recônditos e inconscientes impulsos de certos indivíduos.
Apesar disso, - ou exatamente por isso, - sou pela plena absolvição do Dr. Zorro, que já teve punição suficiente ao transformar-se em alvo de chacota do mundo inteiro. Considere-se, ainda, como atenuantes, que as suas iniciais não iriam durar para sempre e não comprometiam a eficácia dos transplantes, assim como os relógios funcionavam a despeito de conterem minhas iniciais.
Gostaria, no entanto, de examinar uma hipótese para outras possíveis motivações recônditas do cirurgião. Creio firmemente em que o homem veio do barro edênico e tornará a barro ser, como já se afirmou em bom latim: “Memento homo quia pulvis est et in pulverem reverteris”. O paciente obrigado a um transplante estaria na contingência de retornar ao estado original, caso não pudesse contar com as aptidões do cirurgião. Por sua vez, o doador do órgão saudável já se encontraria na iminência de transformar-se na matéria primeira. Clinicamente morto, já era. Nas mãos do cirurgião, são ambos, portanto, barro, o qual se modela e no qual se insufla vida nova. É comum dizer-se que nasce de novo quem se livra de grande perigo ou da morte certa. Esse novo nascimento, para muitos pacientes do Dr. Zorro, foi obra de um homem. Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, assinalando assim sua autoria. O cirurgião de Birminghan assumia a sua (re)criação marcando-a com suas iniciais.
(Alvaro Santos Simões Junior, professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Assis)