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CULTURA

Uma “Santa Dica às avessas”

Rariana Pinheiro,Da editoria DMRevista

Hoje, às 19h30 na Casa Altamiro, a escritora Clara Dawn irá lançar seu sétimo livro – e terceiro romance –, O Cortador de Hóstias (Ed. Livres Pensadores). Se contrastando a suas duas últimas publicações, destinadas ao público infantil, e da alma leve da autora, que, segundo suas próprias palavras: “desconhece a capacidade de odiar a vida, o mundo e suas gentes”, ela embarca em uma viagem sorumbática, onde há espaço até para um pedófilo infanticida. Em, O Cortador de Hóstias, o leitor é transportado para Pirenópolis de 1918, onde as belezas arquitetônicas e naturais da cidade servem de cenários para as angústias da protagonista Flor Maria. A personagem é intensamente ferida por abusos que sofreu na infância, portanto, sua meta é nítida, desde o começo da trama: matar seu algoz. Com presteza e sensibilidade, Clara conduz ao leitor à trama densa, usando três narradores-personagens, em um quebra cabeça interessante de visões. Sobre a nova obra, inspirações, e influências, conversamos com Clara Dawn, que no bate-papo também parece abrir também a mão da parente doçura, para reclamar de mais espaço para a cultura em Goiás.

DMRevista: Como nasceu a história de O Cortador de Hóstias?

Clara Dawn: Em meados de 2010 e não se chamava “O Cortador de Hóstias”, o nome era “O Vale das Quimeras”, estava ambientado em Ouro Preto-Minas Gerais e no ano de 1975. Era pra ser um livro com três contos longos, aparentemente distintos, mas que traziam a lume a mesma história. Um era narrado por uma mulher; outro por um homem e terceiro era o narrador observador. Se o leitor decidisse ler só um dos contos teria apenas a visão dos narradores e assim passaria a julgar a história a partir daquele prisma. Mas se ele atentasse aos outros dois poderia compreender as vertentes por mais de um conceito. Ambos contavam a história de uma suposta sucuri, no Vale das Quimeras, que em noites sem lua arrastava crianças para o fundo do rio, mas não antes do abuso sexual. Esse formato e título já estavam bem definidos em minha mente. Até que, em 2012, numa conversa com o amigo Antônio da Mata, ele me mostrou a máquina de cortar hóstias. Pronto! Fiquei louca pela ideia de dar voz ao meu assassino de crianças.

DMRevista: E por que a história migrou para a Pirenópolis de 1918?

Clara Dawn: A coisa foi tomando novos rumos e eu precisava de respaldo para compor meu personagem e o respaldo sempre, sempre... vem da poesia. É dela que busco as imagens para construir minha narrativa. É ela que acende em mim a vontade de escrever com toda a angústia que a escrita necessita. Então achei, por acaso, os versos de Érico Curado e Hugo de Carvalho Ramos e eu não acreditava no presente que o destino me dera: aqueles versos datados entre 1913 a 1917 fizeram-me levitar e, quando percebi, eu estava em Pirenópolis em 1918, divagando entre as lendas da história da cidade e principalmente sobre o mito da Santa Dica. Decidi mudar toda a ambiência e data, mas foi aí que entrei em desespero, pois em 1918 ainda não existia a máquina de cortar hóstias.

DMRevista: Por que fala que a protagonista Flor Maria é uma “Santa Dica às avessas”?

Clara Dawn: Eu me inspirei em Santa Dica para que Flor Maria crescesse no decorrer da trama, e quem conhece a história da santa verá em Flor suas características marcantes. Também foi um presente do destino, pois Flor Maria nascera em minha mente antes mesmo de eu conhecer o mito da Benedita de Lagolândia. Elas são tão parecidas em força de caráter que a comparação foi inevitável. Mas, ao contrário de Santa Dica, Flor não é religiosa, antes possui um coração insensível às coisas sagradas por considerar que a religião extrai das pessoas o direito de pensar por si. “A ignorância é um privilégio” – diz a Flor, enquanto fala da crendice de que uma sucuri e não um homem é quem devora as crianças. Por isso ela odeia o lugar onde nasceu e seus habitantes crédulos e acomodados.

DMRevista: Seus dois últimos livros foram dedicados ao público infantil. Como foi a transição do lúdico para esse clima tenso, misterioso e tão adulto de O Cortador de Hóstias?

Clara Dawn: Meus dois livros de literatura para criança foram desafios de editores. Mesmo tendo formação em psicopedagogia eu nunca pensei em escrever para criança. Tenho muita facilidade em fazê-lo. Escrever para criança, para mim, é como, para Mozart, tocar seu piano. Está em mim, minha alma desconhece a capacidade de odiar a vida, o mundo e suas gentes: coisa de criança. Pediram-me para escrever e no outro dia estava pronto. Simples e alegre como fazer bolhas de sabão. Se de repente alguém me pedir para escrever para criança escreverei, mas o que me toca, o que me assassina e depois ressuscita é essa narrativa densa e ao mesmo tempo leve. Esse vai ao céu e despenca rumo ao inferno: essa coisa terrivelmente humana que nos diz quem somos. Sendo assim, não houve transição: a literatura para criança é o que eu gostaria de ser quando crescer, mas o romance é o que eu sou desde que eu nasci.

DMRevista: Você já está em seu sétimo livro. Como escritora, atua ainda no Diário da Manhã e na Revista Raízes. A realidade de quem quer “viver para as letras” em Goiás é fácil?

Clara Dawn: Você fez uma pergunta um tanto retórica. Sabemos que não é fácil. Na verdade é impossível “viver” da arte, não apenas em Goiás, mas no Brasil como um todo, e a gente vê em filmes e outros meios de comunicação que não é fácil em lugar nenhum do mundo. Esse “viver” assim entre aspas é impossível mesmo: as Leis de Incentivo nos dão o mar e até as varas para pescar, mas os peixes ficam encalhados, porque não há quem os venda. Posso falar de Goiás que tenho orgulho e vergonha: orgulho porque é terra de Hugo de Carvalho Ramos, Rosarita Fleury, Érico Curado, Marieta Teles, Cora, Yeda (e oh, céus, quantos mais contemporâneos vencedores de Jabutis e outros prêmios nacionais e internacionais).

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