Filosofia e Direitos Humanos
Redação DM
Publicado em 16 de outubro de 2015 às 22:16 | Atualizado há 10 anosPaís líder em violações aos Direitos Humanos, o Brasil carrega índices gravíssimos: segundo um relatório da ONG internacional “Transgender Europe”, travestis e transexuais são mais vulneráveis à morte no país do que em qualquer outro lugar no mundo; segundo a Anistia Internacional, a polícia brasileira é a que mais mata no mundo; norte e nordeste lideram ranking de assassinatos a pessoas negras; segundo dados da Infopen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias) nos últimos 14 anos cresceu em média 161% o número da população carcerária, totalizando em 2015 mais de 600 mil presos para apenas 376 mil vagas. Transfobia, lesbofobia, homofobia no geral, racismo, execução sumária e superlotação de presídios são alguns problemas centrais na vida dos brasileiros.
Diante desses dados, nota-se que enfrentamos sérios problemas que nos levam a uma indagação: os Direitos Humanos só são reivindicados quando eles estão em falta? Vejamos o que as teorias da filosofia nos ajudam a compreender.
Immanuel Kant, filósofo prussiano, apresentou no século XVIII sua concepção de que a ação moralmente boa é aquela praticada pelo reconhecimento do dever moral de praticar tal ação, sendo descrita como um conjunto de regras de conduta. Definido como imperativo categórico, o homem “age somente, segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal”. Nessa definição feita na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes de 1795, Kant considera que tal princípio se torna uma ética da liberdade responsável pelo mérito de exigir dos seres humanos um respeito mútuo para uma coexistência na sociedade. De acordo com Kant, “há um imperativo que, sem tomar por fundamento como condição qualquer outra intenção a se alcançar por um certo comportamento, comanda imediatamente esse comportamento. Esse imperativo é categórico” (KANT, 2009, p. 197).
Algumas décadas antes, Jean-Jacques Rousseau, na obra Do Contrato Social (1762), concebeu que homem nasce em um estado de natureza livre e que ao mesmo encontra-se prisioneiro nele. Assim, a liberdade como condição humana, faz parte da nossa natureza, logo, ao negá-la estamos também negando nosso pertencimento de humanidade.
Ao viver em sociedade, diria Rousseau, o homem cria uma base de um contrato eticamente motivado pelo interesse inerente a si e sua capacidade racional, ou seja, as determinações de nossas regras partem do próprio exercício de nossa liberdade consciente. Ao classificar essa base contratual, considera que o interesse privado se perde nas vontades particulares. Utilizando do conceito de vontade geral, ele diz: “Conclui-se do precedente que a vontade geral é sempre certa e tende sempre à utilidade pública; donde não se segue, contudo, que as deliberáveis do povo tenham sempre a mesma exatidão” (ROUSSEAU, 2000, p. 91). Portanto, para o filósofo genebrino, ao viver na sociedade civil estabelecida por um contrato social o homem perde sua liberdade natural e o direito ilimitado de fazer o que quiser; agora, submisso racionalmente pelas leis que regem a sociedade de caráter universal tende a agir em conformidade com tal princípio.
A participação política ganhará contornos relevantes na teoria de Montesquieu ao trabalhar a ideia de lei. Na sua concepção, o filósofo francês traz a tona na obra O Espírito das Leis (1748), que o cidadão livre tem o acesso ao poder através de suas instâncias com o conceito de lei. Pensando em lei como “relações necessárias que derivam da natureza das coisas”, o objeto de Montesquieu é o espírito das leis, isto é, as relações entre as leis (positivas) e as questões externas à própria lei. Montesquieu tenta explicar as leis e instituições humanas, sua permanência e modificações, a partir de leis da ciência política. Trazendo de John Locke, o autor revela que o princípio do poder deve autolimitar-se, ou seja, criar em si, os próprios mecanismos de seus controles contra seus próprios abusos. Ele dirá que “é verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste em se fazer o que se quer. Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer” (MONTESQUIEU, 1993, p. 149).
Essas explanações filosóficas são as bases da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Publicada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. O documento traz controvérsias e debates. Fruto de um período extremamente conturbado das relações internacionais até meados do século XX (duas grandes guerras, governos totalitários, descolonização afro-asiática e crise dos paradigmas políticos internacionais), o documento traz ao seu total 30 artigos com o objetivo de manter os princípios básicos que todo ser humano carrega resumidamente presente nas primeiras linhas de seu preâmbulo sustentando a “sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres (…)”.
Assim, o artigo que abre a Declaração deixa claro sua orientação ocidental marcada pela tradição revolucionária francesa que teoricamente introduziu as noções de liberdade e igualdade em dignidade e direitos, além do exercício racional para agir em fraternidade com a sociedade. Tal princípio relaciona-se com o artigo 2 que aponta para a igualdade de tratamento que o próprio documento possui “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.
Lançando a democracia como pressuposto, o artigo 29 apresenta à sociedade um modelo de sociedade ocidental como princípio de reconhecimento dos plenos direitos individuais e coletivos para “satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática”.
Nesse sentido, a capacidade de se redimir, inerente à humanidade como princípio é reafirmada na Declaração nos artigos 9, 10 e 11, ao dar condições de “uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”. Assim, inviabiliza-se a pena de morte como solução penal, dado este, discutido inúmeras vezes nas reuniões da ONU (por exemplo, em 2007) e da Amnistia Internacional que traça planos para erradicar a pena de morte no mundo.
A capacidade de organização cultural e política, amplamente ferida na história brasileira, deixa claro a importância dos artigos 19 e 20, que assegurem entre outros princípios que, além do direito de liberdade de pensamento, opinião e expressão, “todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica”. Caso seja violado tal princípio, o artigo 7 assegura os direitos de proteção da lei, inviabilizando também as organizações de milícias paralelas que, outrora, cometeram gravíssimas violações ao justiçar certos grupos sociais. Por exemplo, os justiçamentos ocorridos no Brasil no último ano que trouxeram vítimas por questões de estereótipos racistas e misóginos.
Os princípios do documento historicamente receberam críticas por serem considerados como “princípios impunidade” e/ou apoiadores de crimes e práticas infracionais. Tal pressuposto se torna inválido com a própria Declaração em si que, no seu artigo 21, dá à sua legislação, os direitos sobre a vontade do povo que “será a base da autoridade do governo” cabendo inclusive as punições.
No Brasil e no mundo destaca-se alguns marcos históricos dos Direitos Humanos e suas posteriores resoluções. Por exemplo, na resolução 2.106-A (XX), da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 21 de dezembro de 1965, instituiu a prática de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundadas na raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por fim ou efeito anular ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos domínios político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública”.
Além desse marco, em 18 de dezembro de 1979 ocorreu a ratificação e adesão pela Resolução 34/180, da Assembleia Geral das Nações Unidas, onde os estados participantes da ONU “condenam a discriminação contra as mulheres sob todas as suas formas, e concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem tardança, uma política destinada a eliminar a discriminação contra as mulheres”.
Recentemente no Brasil, a Lei “Maria da Penha” (Lei 11.340/2006), veio para ampliar tais considerações ao aplicar maior pena aos casos de violência doméstica e familiar contra mulheres e, nesse mesmo ano, a lei 13.104, institui como crime hediondo a prática de Feminicídio “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Tais medidas surgem para conter as políticas já cristalizadas que dão legitimação aos privilégios masculinos, conforme o Código Civil de 1916 que consistia no aparato jurídico de organização coercitiva da dominação do homem na família e na sociedade.
Além disso, no que se refere à mais direitos específicos, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), documento que dá proteção à criança e ao adolescente no Brasil, publicado em julho de 1990, foi ratificado atualmente com a Lei Menino Bernardo (13.010/2014) que diz “a criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los”.
Princípio internacional ou imposição cultural do ocidente, os Direitos Humanos quando estão em falta apresentam retrocessos à criação de uma sociedade internacional que respeite a diversidade cultural e crie maneiras de coexistência entre os povos. No entanto, vale ressaltar que os respeitos aos tratados do documento estão distantes de serem consenso, ainda mais ao se tratar de tradições de culturas diferentes principalmente no que tange a sua tentativa de universalidade. Por assim dizer, os direitos humanos fazem parte dos problemas abertos e mais discutidos na atualidade: qual o empecilho que distancia tanto a teoria da prática?
Referências:
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Discurso Editorial, 2009.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
MONTESQUIEU, Charles Louis de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
*Nota: Eleanor Roosevelt exibe cartaz contendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949).
(João Gabriel da Fonseca, professor do IF Goiano e coautor do “Crimideia” vídeo aulas. E-mail: [email protected])