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Histórias de feridos em explosões em uma cidade que fabrica "foguetes"

SANTO ANTÔNIO DO MONTE, (MG), 4 (AG) - Na noite do dia 24, enquanto boa parte do país celebrava o São João, Santo Antônio do Monte (MG) adormecia em silêncio. A 200 quilômetros de Belo Horizonte, a cidade é o maior produtor de fogos de artifício do Brasil e o segundo do mundo, atrás de uma cidade chinesa. Em seu território, há 72 fábricas de foguetes. Neste ano, elas produzirão 25 mil toneladas de fogos, o suficiente para fazer mil espetáculos como o do réveillon de Copacabana. Apesar do poderio, nas noites de São João, não se ouve nenhum estouro por ali. O histórico de acidentes é farto, e os santo-antonienses não comemoram nada com os "foguetes" que fabricam.

Desde 2012, o Exército, responsável por fiscalizar produtos que levam pólvora, registrou oito acidentes com 14 mortos. Nos últimos 12 meses, foram dois casos, com seis vítimas. A cidade já viveu dias em que uma empresa teve duas explosões. O resultado disso salta aos olhos: sem outras opções de emprego, os feridos e os familiares das vítimas continuam nas linhas de produção de "foguetes".

Numa das salas da prefeitura, Dinho do Bráz, do PSDB, aponta as fotos de seus antecessores. Dos sete últimos prefeitos, cinco eram donos de fábricas ou de famílias que vendem fogos.

- Estou na outra ponta. Comecei a trabalhar com fogos aos 12 anos e já perdi um irmão e um cunhado em explosões. Um teve 95% do corpo queimado. O outro, 98% - diz.

No Sindifogos, que reúne os trabalhadores do setor, o drama é resumido numa declaração:

- Explosão em fábrica de fogos é igual a ataque de cascavel: ou mata ou aleija - afirma Antônio Camargo, presidente da entidade.

O sindicato patronal (Sindiemg) acompanha os casos. Sugere que as empresas forneçam seguro de vida, "mas não pode obrigá-las a isso". Mas o coordenador Américo Libério vê avanços.

- Trocamos o clorato de potássio, muito inflamável, pelo perclorato de potássio. Ele é 20% mais caro, mas muito mais seguro.

Confira abaixo algumas das muitas histórias dos acidentes em Santo Antônio do Monte.

Raimundo Lourenço, 69 anos

Acomodado no sofá de casa, o mineiro Raimundo Lourenço toma coragem e tira a camiseta de supetão. Mostra que a pele negra das costas e do braço direito está recoberta por um tecido ainda mais escuro. Ao toque, as cicatrizes se revelam, ao mesmo tempo, lisas, espessas e extremamente rígidas. Chegam a atrapalhar o movimento. Raimundo puxa a barra da calça e aponta para a panturrilha. A queimadura de pólvora preta, elemento usado para impulsionar os fogos de artifício rumo ao céu, não parou na cintura. Escorreu pela perna abaixo, até o pé.

- Depois disso aqui - diz ele, com os olhos fechados - demorei quatro anos para voltar a andar.

A idade e o cansaço impedem que o mineiro informe com certeza o ano e o mês de sua tragédia, mas Antônio Camargo, colega de profissão e presidente do sindicato dos trabalhadores da indústria pirotécnica (Sindifogos), entra em cena e o socorre:

- Raimundo, seu acidente foi pouco depois daquele horroroso, da Embrafogos, em 1979. Aquela explosão que deixou 13 mortos.

Raimundo assente com a cabeça e pontua que "lá se vão mais de trinta anos". Em seguida, detalha o ocorrido. Era manhã. Ele estava na linha de produção da Fogos Oriental. Viu colegas testando rojões e resolveu chamar a atenção deles. "Experimentar foguetes" é prática comum nas fábricas da cidade, mas aquela não era nem a hora nem o local adequado para aquilo.

- Uma fagulha voou na direção da pólvora preta que estava na minha frente e só deu tempo de eu me jogar no chão. Eu me queimei todinho. Fiquei nu.

Camargo intervém de novo e pergunta se a empresa o indenizou. O senhor de cabelos brancos responde com um muxoxo e convida os presentes para conhecer o quintal. Lá mora o papagaio da família.

- Hoje vivo de puxar carroça. Mas, quando o sol está muito quente, não aguento, não. Tenho que ficar quietinho aqui em casa. É que a pele coça, eu me coço muito e, no fim do dia, acabo sangrando.

Adael Camargo dos Santos, 52 anos

"Passei cinco anos sem trabalhar, mas agora já estou de volta". É com a euforia de quem se sente útil que o mineiro Adael Camargo dos Santos chega em casa depois de mais uma jornada como encarregado da Fogos Líder. "Eu perdi a vista esquerda em junho de 2007, mas estou aqui, vivo. Então tenho que seguir em frente".

No dia de seu acidente, que acaba de completar oito anos, Adael estava na linha de produção, ao lado de pelo menos mais um colega. Os dois trabalhavam na máquina que serve como uma espécie de peneira para a pólvora preta.

- A pá que empurra a pólvora agarrou. Não rodava mais. Então a máquina que estava na nossa frente começou a sacudir, sacudir, e eu falei para o meu colega: "Vamos sair correndo daqui!". Mas tive aquele minuto de bobeira. Enquanto ele saiu pela porta, eu me agachei e, por um instante, me virei para olhar o que estava acontecendo. Veio um relâmpago no meu olho esquerdo e fiquei cego.

Debaixo de um boné azul e por trás de um óculos de grau, Adael carrega um olho muito machucado, difícil de ser descrito. No pronto-socorro de Santo Antônio do Monte, a equipe de enfermeiros e médicos dá notícias da existência de "um exército de olhos de vidro" circulando pela cidade. Adael, no entanto, ainda não fez a cirurgia. Diz de pés juntos que não sente dor e que não precisa de remédios nem colírios:

- Eu também fui queimado no rosto, nos braços e na barriga. A sorte é que fui muito bem atendido, que a empresa cuidou de mim. Passei 30 dias internado na cidade. Depois, mais 90 dias em Belo Horizonte.

Em 2012, Adael voltou a bater ponto na mesma fábrica em que se acidentou. De segunda à sexta-feira, acorda ainda de noite e só retorna às 17h. Quando fala de seu acidente de trabalho, faz questão de destacar que abandonou a seção de explosivos e que virou encarregado. Depois, agradece a Deus:

- Ele é bom demais: me tirou um olho, mas me deixou o outro. Então é vida que segue.

Pedro Geraldo Pinto, 50 anos

"No dia 29 de setembro do ano passado, eu estava andando pela Fogos União, quando, de repente, pisei num troço. Vi um clarão vindo de baixo para cima e resolvi sair correndo. Mas era estranho: eu corria e caía. Corria e caia. Só depois de cair três vezes vi que meu pé tinha ficado lá atrás, agarrado no chão".

O mineiro Pedro Geraldo Pinto encara com surpreendente leveza o fato de ter tido a perna direita amputada do joelho para baixo. Não se envergonha de levantar a calça, desamarrar o tênis e mostrar a prótese de metal e o pé de plástico que sua cadela Lassie costuma lamber.

- A principal mudança na minha vida é que, agora, eu tomo banho de bengala - diz, rindo. - O sapato é o mesmo. A meia é a mesma. A prótese, toda paga pela empresa, não pesa. Tive muita sorte de ter sido bem atendido. Sou grato à empresa por ter me dado toda assistência, por me levar até hoje de um lado para o outro. Todos os meses, eles trazem meu contracheque aqui. Não tenho do que reclamar.

Pinto acredita que voltará a trabalhar no dia 1º de agosto, mas seu irmão Derci, que acompanha a conversa, pede paciência e prudência.

Aos 48 anos, Derci Pinto é outra vítima dos "foguetes". No dia 14 de dezembro de 2013, ao mover um saco de lixo no galpão da Fogos Sabiá, viu partículas de pólvora voarem na direção de uma fogueira que não havia sido totalmente extinta e acabou sendo engolido pela chama.

- Tive braços, pernas, rosto e tórax queimados. Passei 35 dias no Hospital João XXIII, em Belo Horizonte, 21 deles completamente sedado.

Hoje, Derci usa luvas, meias e cintas para evitar o sol. Quando está sem elas, mostra uma pele fina e besuntada. Devido aos enxertos que fez , com pele da perna, seus dedos atrofiaram. Já não ficam totalmente abertos.

- Agora ele usa protetor solar fator 100, creme, hidratante e sabonete especial. A sorte é que tudo é pago pela empresa - diz Elaine Pinto, sua mulher.

Odair José de Oliveira, 37 anos

Às 5h do dia 18 de setembro de 2013, o mineiro Odair José de Oliveira beijou a mulher, então grávida do quinto filho do casal, e embarcou no ônibus que a Fogos Povo mandava à cidade para levar seus empregados à fábrica.

Oliveira era bom de pólvora. Ganhava cerca de R$ 1.800, o suficiente para pagar o aluguel e manter as crianças estudando. Às 9h, no entanto, uma explosão sacudiu Santo Antônio do Monte, e Oliveira, queimado da cabeça aos pés, foi levado ao pronto-socorro. Às 12h, era acomodado num helicóptero e partia de sua cidade-natal rumo a Belo Horizonte. Lá, sobreviveria por duas semanas.

Sem tirar os olhos da linguiça que frita para o almoço dos meninos, a viúva Maria do Rosário, de 34 anos, narra uma vida de penúria:

- Quando Odair morreu, trabalhava sem carteira. Assim que soube do acidente, pedi à empresa que assinasse os documentos dele de forma retroativa, mas só colocaram um salário mínimo. Resultado: não tive como continuar pagando aluguel. Sorte que meus irmãos se juntaram e construíram essa casa aqui, nos fundos do terreno onde mora minha mãe.

A casa tem cozinha, banheiro e dois quartos. Maria do Rosário divide o primeiro com Miguel, de 1 ano, e com Guilherme, de 3. O segundo abriga Gabriel, de 9, Vinícius, de 11, e Tiago, de 18 anos.

- Há dois anos, entrei com uma ação na Justiça de Bom Despacho (MG), mas, até agora, nada. Peço que o valor na carteira do Odair seja corrigido, que a gente receba os direitos trabalhistas dele e uma indenização. Mas já fizeram sete audiências, e a empresa nunca foi nem mandou representante.

- A Justiça é um trem lento demais. Mas o pior de tudo - pontua o pedreiro Fábio Júnior Alves, irmão da viúva - é que ainda temos família trabalhando com fogos: temos outra irmã lá agora mesmo.

O GLOBO tentou contato com a Fogos Povo através do sindicato patronal e também pediu ajuda ao Exército, mas não obteve sucesso.

Uma cidade explosiva

SANTO ANTÔNIO DO MONTE (MG) e RIO, 4 (AG) - Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, um integrante da banda Gurizada Fandangueira acendeu um rojão na boate Kiss, em Santa Maria (RS), e causou a morte de 242 pessoas. Dez dias depois, quatro projetos de lei tramitavam na Câmara dos Deputados para restringir o uso de fogos de artifício em ambientes fechados ou vias públicas e tornar mais rígidos os requisitos para fabricá-los.

Em 10 de fevereiro do ano passado, quando o cinegrafista da Bandeirantes Santiago Andrade foi atingido por um rojão no Centro do Rio e morreu devido aos ferimentos que teve na cabeça, outros três projetos de lei aterrissaram no Congresso com conteúdo semelhante. Esse conjunto de propostas tira o sono dos trabalhadores e empresários do setor pirotécnico de Santo Antônio do Monte (MG).

Se por um lado a fabricação de "foguetes" mata e fere, por outro, é a única fonte de empregos da cidade.

Dos quase 26 mil habitantes de Santo Antônio do Monte, 2,5 mil (10%) trabalham na linha de produção de fogos. Se somados os empregos indiretos, a cifra sobe para 8 mil, nada menos do que um terço da população.

- Se esses projetos de lei passarem, se ficar mais difícil vender, fabricar ou usar fogos, vão destruir esta cidade aqui - diz o prefeito Dinho do Bráz (PSDB-MG), apontado para fora da janela de seu gabinete: - Não temos uma saída imediata. Há comércio e agropecuária. Produzimos leite. Mas o número de vagas de trabalho nesse setor não chega nem perto ao que vemos nos fogos.

- Seria horroroso para Santo Antônio do Monte - acrescenta Américo Libério da Silva, que coordena o Sindiemg, sindicato das empresas do setor. - Nossa crise começou com a tragédia da boate Kiss, passou pela morte do cinegrafista no Rio e culminou com o 7x1 do Brasil na Copa do Mundo. Apostamos alto na vitória que nunca veio. Agora, estamos vivendo um ano muito ruim, mas ainda pode piorar.

Silva conta que as empresas da cidade já estavam apreensivas com a tramitação dos projetos de lei derivados da tragédia da Kiss. Quando Santiago Andrade morreu - e os empresários constataram que o rojão de vara que atingiu o cinegrafista havia sido fabricado por lá -, o cenário piorou:

- Querem incriminar a produção de fogos quando o que houve nos dois casos (Kiss e cinegrafista) foi o uso inadequado do produto. Se as pessoas lerem atentamente as instruções de uso, não se machucam.

O sindicato dos trabalhadores também teme a tramitação no Legislativo. Antônio Camargo, presidente do Sindifogos, diz que, "em toda família de Santo Antônio do Monte, pelo menos uma pessoa está envolvida na produção de foguetes" e que, apesar dos acidentes de trabalho, essa é a principal fonte de emprego em toda a região.

Se ficasse mais difícil produzir, vender ou usar fogos no Brasil, o principal beneficiado seria a China. Como em outros setores, os chineses abocanham parte do mercado nacional e pretendem ganhar o Paraguai, um dos principais importadores do Brasil.

- As pessoas soltam fogos quando estão contentes, quando querem comemorar algo. Isso já é uma tradição. Não vai mudar - diz Silva.

Para defender os interesses da cidade, os trabalhadores e empresários da cidade apostam suas fichas no deputado federal Domingos Sávio (PSDB-MG), eleito com forte apoio da região.

Sávio crê que proibir a produção de fogos seria ir contra uma tradição cultural. Para ele, cidades como Santo Antônio do Monte enfrentariam graves dificuldades econômicas. Ele vê outro efeito de uma possível aprovação de medidas restritivas à fabricação, ao comércio e ao uso de fogos: o incentivo à clandestinidade, aumentando riscos tanto para o trabalhador quando para o consumidor.

O deputada apoia uma lei que eleva a segurança na fabricação e comercialização de "foguetes" - projeto de lei proposto pelo senador Ciro Miranda em 2013. A proposta, diz, é resultado de um consenso entre a Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg) e os sindicatos, com a participação do Exército e da Secretaria de Segurança Pública do estado.

Texto de: Cristina Tardáguila* e Chico Otavio

Texto de: Cristina Tardáguila - Enviada especial

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