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Caixinha de natal sofre efeitos da crise

O hortifruti Mondego, no box 50 da Cobal do Humaitá, é conhecido pela oferta de legumes, pelas frutas bonitas e, a partir deste final de ano, pelo pragmatismo econômico. Na caixa destinada às tradicionais gorjetas de fim de ano, lê-se: “Por motivo da crise, estamos antecipando nossa caixinha de Natal. Vem pra caixinha você também.” O gerente Bellini Sobral logo esclarece que “a criatividade toda” é do vendedor Daniel Fernandes, três décadas de Cobal, 15 anos de loja e há cinco natais supervisor da arrecadação e reparte do bônus dos clientes — cujas doações são saudadas com sonoros gritos de “bingo”.

Em 2014, a divisão do bolo (que varia por função e tempo de casa) rendeu R$ 500 em média para cada um dos 40 funcionários. Em 2015, mesmo com a caixinha antecipada, em ação desde outubro, deve haver menos dinheiro.

— Ano passado, deu para dar uma moral legal. Este ano, vai ser menos. Bem menos — diz Daniel, que arrisca uma análise. — Culpa dos mensalões da vida.

Na Cobal, na padaria, no condomínio e até na casa de massagens, a previsão é a mesma: a caixinha de 2015 será fraca. Se neste ano o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro deve encolher 3,5% e a produção industrial, 10%, a queda na arrecadação natalina chega a 50% em alguns endereços. É um baque para uma tradição brasileira e particularmente carioca, seja pela antiguidade (pratica-se desde o Império) ou pela abrangência (em outras grandes capitais, não há notícia de táxis cobrando bandeira 2 durante as 24h dos dias de dezembro a título de “abono de fim de ano”).

Situado na Praça XV, vizinho à estação onde chegam e partem as barcas para Niterói, o Art Café não aceita cartões, só trabalha com dinheiro. Como todos os clientes recebem o troco do refrigerante e do salgado em notas e moedinhas, parte sempre ia parar na caixinha de fim de ano. Ano passado, por exemplo, a iniciativa foi tão bem-sucedida, que, mesmo com um ladrão levando R$ 2 mil no meio da arrecadação, foi possível juntar mais R$ 2.500. Para falar de 2015, a gerente Esmeralda Campos põe na boca a caneta Bic azul, ajeita a rede preta no cabelo e admite:

— Está muito ruim. Se chegar a R$ 1 mil, é muito.

Perguntada se os funcionários da lanchonete não deveriam reforçar o pedido para compensar a queda de quase 80% da arrecadação, ela diz:

— Não pode. Não fica bem o funcionário pedir caixinha de uma maneira escancarada. É sem ética. O cliente tem que dar a quantidade que a pessoa merece, se achar que merece.

A crise da solidariedade financeira pode ser explicada pela teoria econômica. Segundo o escritor Alexandre Versignassi, autor de “Crash: Uma breve história da economia”, a confiança é fundamental (e letal) para doações de fim de ano.

— No Brasil, neste momento, as pessoas estão com medo do que pode acontecer. Essas projeções para o futuro se refletem no micro e no macro: o cara que ia trocar de carro desiste, a fábrica que produz o carro cancela um turno e manda gente embora. Despesas supérfluas, como a caixinha de fim de ano, são os primeiros cortes que qualquer um faz — diz Versignassi.

A verdade é que, no Rio, o uso da caixinha de Natal já foi alvo de abuso e polêmica e, por isso, muito questionada. Em 1997, por exemplo, o então diretor de Operações da Comlurb, Jair Otero, passou o Natal de orelha quente após declarar ao GLOBO que o serviço dos garis seria menos eficiente em dezembro porque eles precisavam parar para recolher sua caixinha entre as residências da cidade. Antes da disseminação dos cartões de débito e crédito, era comum que, ao final do ano, o de comida e remédio fosse acompanhada de pedidos indóceis de doações. Há até relatos de agências de banco cujos clientes foram abordados na saída por seguranças que, gentis e armados, pediam uma ajudinha. No início deste ano, uma loja da Rua da Alfândega tentou emplacar uma “caixinha de carnaval”, para a folia dos funcionários. Não colou.

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Além da incontornável crise, os comerciantes do Centro têm outro suspeito para o ar que preenche a caixa de gorjetas: as obras da prefeitura.

— O sujeito que vem ao Centro perde horas no trânsito e não tem tempo de tomar um café, de comer um sanduíche. Além disso, muito lugar fechou, e as ruas estão vazias — diz o português Rui Marinho, 30 anos à frente da padaria Casa Velha, na Rua da Assembleia.

Rui calcula que o bônus de Natal, que em 2014 chegou a R$ 300, fique em torno de R$ 100. Ali perto, na papelaria Chu’s, administrada pelo clã chinês Chu, a vendedora Vanda Ramalho conta que a caixinha anda às moscas e o livro de ouro, que registra doações dos clientes fixos, perdeu o brilho. Na Kill Games, na Saara, Eduarda Loiola conta que os fregueses pedem tanto desconto que, se ela ainda for falar em caixinha, periga perder a venda.

Numa lan-house do Shopping dos Antiquários, em Copacabana, um atendente que prefere não se identificar lamenta, fazendo aspas imaginárias com os dedos:

— Mesmo me “esquecendo” de chamar o sujeito na hora, “dando” minutos a mais de “cortesia”, ele não “se lembra” de deixar uma moedinha.

Na Terapia Relax, também em Copacabana, que oferece “massagens com complemento íntimo”, está em baixa a gorjeta coletiva, dividida entre as dez funcionárias. Mas uma delas, codinome Natasha, revela que a doação individual segue “boa, como sempre, bem”. (A reportagem não teve acesso aos serviço da casa, mas o folheto afirma que as moças são “habilidosas na arte da sedução”.)

Para os clientes do Park Estacionamento, no Centro, há duas formas de contribuir: caixinha para usuários eventuais e livro de ouro para mensalistas.

— Todo ano, a gente dá o melhor da gente, trata o carro bem, sem bagunça. Acho justo pedir uma ajudinha, uma contribuição para o Natal — diz o manobrista Christian Carlos, paraibano de Guarabira, há quatro anos no Rio.

— Este ano está mais fraco, por causa da crise, mas ainda deve dar um bom dinheiro para eles — diz o gerente do estacionamento, Rodrigo Silva, que esclarece que a caixinha é dos funcionários. — Participo no máximo como um auditor independente.

Mas não é na esfera comercial, e sim na residencial, que a caixinha costuma provocar mais controvérsia. Nos condomínios, o livro de ouro ganha destaque na portaria, aguardando a assinatura e a contribuição dos que passam por ali. Em alguns prédios em que os moradores costumam ir diretamente do apartamento para a garagem, há cobrança via interfone. E, pior dos cenários, às vezes a cobrança é embutida no boleto mensal, prática condenada pelo Secovi Rio, sindicato da habitação do estado.

— A impressão é que os pedidos estão maiores e as caixinhas estão mais vazias — diz Ana Cristina Rielo, advogada do departamento jurídico do Secovi Rio. — É uma tradição que fica até chato para o síndico cortar, mas a gente determina que ele não interfira, que seja organizado pelos próprios funcionários. E o mais importante: que a cobrança seja voluntária, espontânea, sem pressão.

Para a consultora de etiqueta Danielle Stipp Melamed, a caixinha do condomínio perdeu um pouco do sentido original, mas é válida:

— O que era uma gentileza virou obrigação, apesar da taxa extra que garante o 13º salário. Acho que tem que dar, porque a pessoa convive o ano todo com você. É diferente da caixinha do táxi ou do posto de gasolina, que considero exagero. Muitos moradores acham mais fácil dar o dinheiro. Mas, em um ano difícil, não é falta de educação dar um presente simples, algo para a ceia. Cai bem no espírito do Natal.

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