Esconderijo: Marli
Redação DM
Publicado em 13 de maio de 2015 às 02:46 | Atualizado há 5 mesesFenômeno na internet, cantora baiana já soma 13 anos de carreira
por Leon Carelli
Na primeira matéria da série Esconderijo, do DMRevista, você vai conhecer o trabalho da cantora baiana Marli, que aos 32 anos já coleciona oito álbuns de estúdio em 13 anos de carreira e vários singles, coletâneas, remixes e videoclipes. O foco das matérias desta série é adentrar no esconderijo de vários artistas que, apesar de não serem tão visados na grande mídia, consolidaram-se como referência no estilo e meio onde atuam.
Com criações excepcionalmente originais, capazes de deixar qualquer mãe ou avó descompassada diante de tamanha loucura, o canto sincero e realista de Marli, natural de Ipirá, Bahia, e as composições e sonoridades de Witched remetem a um universo cheio de mistérios e críticas sociais. O projeto experimental foi iniciado em 2002 por Witched, então com 15 anos, e Marli, que na época trabalhava como doméstica na casa dele. Eles produzem no estilo “faça você mesmo”, contando inclusive com um selo próprio de gravação, a Furacu Records.
Criação
O que chamou a atenção do jovem Witched em sua então empregada foi ter visto um caderno com letras e versos criados pela própria Marli. Inspirados em artistas como Madonna e Björk, arquitetaram – e continuam arquitetando – uma figura de várias faces, com um vocal particularíssimo que exige um certo nível de desconstrução do que entendemos como música para que possamos apreciar. A disponibilização das músicas é totalmente gratuita no site da cantora. É possível baixar todo o conteúdo dela no portal Marli Online, inclusive as capas e encartes dos discos.
O grande estouro de Marli veio com o Youtube. Clipes como o de “Bertulina” e “Cachaça” (hoje com 2 milhões de acessos) viraram febre na internet. Apesar de muitos afirmarem que a intenção ao assistir os vídeos é simplesmente recreativa, alguns fãs compreenderam a proposta artística da dupla e passaram a acompanhar assiduamente os novos trabalhos. Com o tempo, os álbuns passaram a ser lançados em um maior intervalo de tempo e as canções passaram a contar com estrutura mais sólida.
Personalidade
Passando por vários estilos musicais (eletropop, brega, punk, industrial, entre outros) e com letras que não dão a mínima para o moralismo em relação a questões sexuais, religiosas e políticas, Marli vem sendo citada como inspiração por vários artistas independentes. Dope Barbie, atriz de filmes amadores na DrogaFilmes, cantora e ex-baixista da banda Sutiã Killer, comenta como conheceu Marli. “Foi na época do Orkut, deve ter mais de 7 anos, era quando o clipe de Bertulina virou febre”.
A artista destaca o papel crítico do projeto musical como um dos aspectos mais interessantes, e revela ainda a vontade de regravar uma das músicas de Marli. “Se eu tivesse a oportunidade de escolher uma música dela para cantar, seria Planalto Central, uma análise muito boa sobre o Brasil, copa do mundo, e a política”. Não é muito difícil de encontrar quem leve a sério o trabalho da cantora. Dope recomenda a canção Suave Peste Negra, de 2010, para iniciantes em Marli. Várias versões de suas canções já ganharam nova roupagem de bandas e violonistas. “Cachaça” já ganhou inclusive versão em hardcore.
A também atriz goianiense Ludimila Mendonça relembra sua referência a Marli no curta Pássaros no Paraíso, de 2014. “O filme toca duas músicas dela. Alcatruz e Cachaça. Tem um momento em que a minha personagem, perdida na loucura, em um surto de metalinguagem, vira para a câmera e diz que acha que a Marli é a melhor cantora da Música Popular Brasileira. Adorei poder falar dela no filme, é uma arte muito rica”. Ludimila ainda fala do exercício de abstração que se torna ouvir a cantora. “Quando você vai conversar com um fã de Marli, já entende que a pessoa tem mente aberta e não tem nenhuma frescura artística”.
Produção
Em entrevista ao blog O Cretino Lima, Witched revela um pouco de suas motivações em criar um projeto totalmente independente das burocracias da indústria cultural. “Eu acho que o negócio funciona porque nós trabalhamos em conjunto. Eu tenho consciência de que fazemos algo diferente. Se eu digo que vou chamar a empregada da minha casa pra gravar músicas, as pessoas esperam que saia algo gratuitamente engraçado, vulgar ou algo assim. Eu poderia chamar a Marli pra cantar o que a Tati Quebra-Barraco canta, ou transformá-la numa musa do brega. Isso sim seria ridículo”, afirma Witched.
Questionado se o baixo orçamento de produção prejudica a intensidade do projeto, o produtor é categórico ao defender a total liberdade, lembrando da dificuldade de assimilar a ideia real do canto de Marli. “Do mesmo jeito que seria se tivéssemos as limitações de uma gravadora tradicional, se é que existe essa possibilidade. Acho que o segredo é a combinação dos elementos. Todo o processo de criação é algo lúdico, e acho que isso é o mais difícil de assimilar pra quem não conhece”.
O produtor ainda explica que o resultado musical característico e original ao qual levou a parceria Marli/Witched dificilmente chegaria à finalização desejada caso tivesse contratos e atuação ficcional envolvidos. “A Marli não está ali forçando um sotaque, pronunciando errado de propósito ou se esforçando pra ser engraçada. É algo natural dela. E eu não vejo a coisa funcionando de outra forma”.
Composição
Em relação à criação das letras e dos instrumentais, Witched assume grande parte da autoria, mas alerta para a flexibilidade que dá à interpretação de Marli, que inclusive já compôs parte de algumas canções. “São todas escritas por mim. Apenas ‘Pirulito’ foi escrita inteiramente por Marli. Algumas contêm vocais improvisados, como ‘Vai pro Inferno’ e ‘História de Ninar’. Mas eu sempre me inspiro em coisas que ela diz, e durante a gravação, ela sempre acaba mudando um verso ou outro. Por isso eu sempre credito as letras a nós dois”.
A gravação da parte não vocal das canções passa por uma série de captações caseiras e programas de computador, como explica o produtor. “A partir do ‘Colostro’ (2005), a produção passou a ser inteiramente minha, com raras exceções. Eu tenho um teclado ligado ao PC, e daí sai praticamente tudo. Pro ‘Céu de Anastácia’, usava quatro ou cinco softwares diferentes, cada um pra uma etapa diferente da produção”. O último disco de Marli, Maremotrix, de 2013, possui uma temática própria que dá um ar conceitual ao disco, mostrando a evolução do processo criativo.
*Matéria publicada origialmente na versão impressa do DM.