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OPINIÃO

Não Dunga, eu não gosto de apanhar!

O técnico da seleção brasileira de futebol, Carlos Caetano Bledorn Verri, mais conhecido como Dunga, proferiu a seguinte frase, para referir-se a seu histórico de vida, em que avalia ter sido muito sofrido: “Acho que sou afrodescendente de tanto que apanhei”.

Em um primeiro momento, a frase até poderia ser vista de forma positiva, ao identificar uma pessoa que reconhece que negros sofrem muito mais que não negros, em todas as fases de sua vida. O negro apanhou para ser trazido a força no período escravocrata. Apanhou durante todo o período de cativeiro. Apanhou para tentar se encaixar numa sociedade racista pós abolição formal. E apanha até os dias de hoje, para enfrentar o mito da democracia racial, que teima em apresentar um Brasil miscigenado, sem problemas e conflitos raciais.

Mas ao ler o conteúdo da entrevista, o encantamento por uma pseudo fala consciente de Dunga desaparece com a frase completa: “Então, eu até acho que sou afrodescendente, de tanto que apanhei e gosto de apanhar”.

Dunga, quem disse que eu gosto de apanhar?! Quem lhe disse, senhor técnico de uma seleção com presença marcante de negros ao longo de sua história, que o Afrodescendente gosta de apanhar da vida, da polícia, do racismo?!

Somos mais de 50% da população brasileira, e ainda assim, negros e negras apanham desde o começo de suas vidas, quando não encontram referências positivas de sua cor. Quantos médicos conhecemos ao longo de nossas vidas, que são negros de cor e de consciência? Quantas apresentadoras de televisão para público infantil são negras? Qual o percentual de negros e negras nas propagandas privadas, nos programas de tv, em novelas? Quantos juízes e juízas negras, temos no Brasil? Dos 513 deputados federais, e 90 senadores, quantos são negros ou negras?

No Brasil, o negro só é maioria em números negativos, como a maioria da população carcerária, a maioria dos assassinados pela polícia. Serviços que remuneram mal, como na área de limpeza, segurança, construção civil, o negro é presente em maioria.

O racismo é marcante no Brasil, e a fala do técnico Dunga reforça o estereótipo de que o negro gosta de apanhar, é preguiçoso, não gosta de trabalhar, ou faz serviço mal feito. Não preciso explicar aqui, o que significa na linguagem popular o “serviço de preto”, “negrice”, ou até mesmo “denegrir” a imagem de alguém.

Precisamos avançar, e muito, na luta contra o racismo. As Ações Afirmativas de Combate ao Racismo instituídas nos últimos anos ainda são poucas e ineficientes. Necessitam de ampliação e controle de sua aplicação, como a Lei 11.645/08, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história da África, Cultura afrobrasileira e indígena nas escolas brasileiras, pouco aplicada na prática.

Não podemos nos calar, diante de falas grosseiras e absurdas como a do técnico Dunga.

A luta continua, até que a célebre frase do estadista Martin Luther King, em seu discurso intitulado de “Eu tenho um sonho”, se concretize:

“Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”.

Afroabraços.

(Michael Laiso Felix, historiador, negro, especialista em cultura afro-brasileira, umbandista, militante no combate ao racismo e intolerância religiosa)

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