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OPINIÃO

Ecocrítica, música, poesia e profecia

No final dos anos 1970, o teórico de literatura, William Rueckert, juntou os termos "eco" e "crítica" com a finalidade de pensar analiticamente a relação existente entre a poética literária e o movimento ecológico que então ganhava força. No ano de 1996 publicaria um volume com vários artigos que embasavam um campo que nos anos seguintes se desdobraria na chamada ecocrítica, que volta o seu olhar para a forma como o espaço em literatura é visto e trabalhado pelos escritores de todos os gêneros em suas produções que abrem espaço para a natureza em toda a sua amplitude.

Como acontece com frequência, o achado literário se aplica a outras poéticas, aqui entendidas como produções artísticas em diversos campos. Neste momento, no Brasil, os postulados da ecocrítica se juntam aos da metafísica, em sua vertente profética, em dois momentos distintos, mas próximos no espaço-tempo. No ano de 2014, houve uma gigantesca crise hídrica, que teve como um dos elementos desencadeadores a ação predatória do homem sobre a natureza. Neste ano de 2015, ocorreu uma tragédia na cidade mineira de Mariana, que foi tragada em um rio de lama, infelizmente real e não metafórico. Em ambas as situações, a sensibilidade profética de dois artistas nacionais de áreas distintas, mas complementares, antecipou os lamentáveis acontecimentos.

Uma das temáticas pelas quais o cantor e compositor Roberto Carlos pautou sua carreira foi a da denúncia de caráter ecológico, o que lhe rendeu críticas no período dos governos militares no Brasil, por conta da sua falta de engajamento nas lutas ideológicas que marcaram aqueles anos, o que ainda repercute nos dias atuais de maneira bastante acentuada quando vêm à tona questões ligadas ao patrulhamento ideológico. Sua mais famosa afronta à censura foi a composição “Debaixo dos caracóis de seus cabelos” - que homenageia o também cantor e compositor Caetano Veloso -, cuja letra, a princípio, parece enaltecer uma musa de cabelos encaracolados.

No ano de 1989, ponta pé inicial da redemocratização brasileira, com a primeira eleição pelo voto direto para o cargo de presidente da República, Roberto Carlos apresentava mais uma de suas canções ecológicas que prestava uma homenagem à floresta amazônica. Na letra de “Amazônia”, o eterno parceiro de Erasmo Carlos cantava trecho que se configuraria profético diante da realidade da crise hídrica que afetou São Paulo e algumas outras localidades brasileiras no ano de 2014, com ênfase no grave problema de abastecimento que afetou o Sistema Cantareira. Canta Roberto Carlos no trecho inicial dessa sua canção: “Tanto amor perdido no mundo/Verdadeira selva de enganos/A visão cruel e deserta/De um futuro de poucos anos/Sangue verde derramado/O solo manchado/Feridas na selva/A lei do machado (...)”.

O ouvinte de 1989 poderia com certa razão considerar as palavras dessa música um tanto ou quanto alarmistas. Mas a tragédia ambiental do Sistema Cantareira no último ano confirmou o que foi apresentado por Roberto Carlos. Vinte e cinco anos são, de fato, um futuro de poucos anos. O leitor perspicaz terá notado e anotado que as palavras do cantor faziam referências à grande floresta brasileira e não a São Paulo e às regiões Sudeste e Centro-Oeste, que também padeceram, em maior ou menor escala, com a mais grave crise d’água da história brasileira. Uma olhada, porém, em notícia veiculada em sites noticiosos será bastante esclarecedora.

Segundo matéria de 30 de março de 2014, publicada no portal de notícias www1.folha.uol.com.br, o climatologista Philipe Fearnside, ganhador de um Prêmio Nobel, veio para o Brasil na década de 1970 para desenvolver pesquisas acadêmicas sobre o clima da região amazônica, estabelecendo-se por aqui e tornando-se uma das maiores autoridades mundiais na matéria. Fearnside vem advertindo há décadas que a forma como a ocupação da Amazônica vem processando-se levaria a catástrofes ambientais como a cheia do Rio Madeira em 2014, que inundou parte significativa da cidade de Porto Velho, capital de Rondônia. Em outras regiões, acontecimentos climáticos catastróficos se manifestariam de forma diversa, causando, por exemplo, seca onde ela não ocorria tradicionalmente, o que acabou por confirmar-se de maneira dramática para o paulistano. Ainda conforme a matéria, as advertências do cientista norte-americano foram negligenciadas, invariavelmente. O resultado apareceu.

Em sua obra Código dos Códigos: A Bíblia e A literatura, o crítico literário canadense, Northrop Frye, faz referências a uma importante modalidade sob a qual a natureza é percebida na cultura judaico-cristã, ao mencionar que ela teria acompanhado a queda espiritual do homem. Assim, à natureza perfeita do Éden se sucederia uma natureza que guardaria a beleza original, mas em grande medida somente quando contemplada de longe, pois a aproximação revelaria os seus aspectos decaídos, como climas agrestes, vegetações selvagens, fauna e flora muitas vezes malsãs.

A referencialidade literária em torno dessa natureza decaída, no escaninho ficcional, revela-se aparentemente inesgotável. Desde as transcrições de Guimarães Rosa em torno da paisagem dos caminhos do sertão em “Grande sertão: veredas”, a narrativas como as que envolvem o personagem Fabiano em “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, ou em contos regionalistas como a extraordinária narrativa do escritor goiano, Bernardo Élis, no conto “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá”, que os embates entre o homem e a natureza são relatados de forma magistral por estes grandes mestres literários.

Se Northrop Frye aponta a queda da natureza em sua obra, outro importante crítico literário, o norte-americano Harold Bloom, discorre em “Anjos caídos” sobre a queda espiritual humana, que teria precedido e causado a queda da natureza. Para o professor de Yale, os anjos caídos da tradição teológica do Ocidente representariam a humanidade com todas as suas mazelas intelecto-morais. Dentre estas, certamente, o descaso para com a natureza representa uma importante faceta. Numa espécie de círculo vicioso, as forças naturais reagem aos desmandos, estabelecendo desastres em maior ou menor grau, o que sempre causa espanto pela dimensão que os fenômenos podem atingir. Faz-se necessário, portanto, uma atitude mais sensata da humanidade em relação à natureza. No caso brasileiro, cuidados com o meio ambiente tão rico e vasto quanto os biomas representados pela floresta amazônica, o cerrado e as bacias hídricas, que são as mais ricas do mundo.

Os apontamentos do cientista Philipe Fearnside referendam a proposição holística apresentada na metáfora da borboleta que bate as asas em uma região do globo e influencia o clima em localidade oposta do mundo. Seria interessante que o ser humano se tornasse mais atento a essas realidades. Advertências científicas e poéticas não faltam. Não é muito racional pagar para ver, já que neste caso esta afirmação metafórica percorre um caminho inverso ao da estrutura da metáfora, partindo de uma proposição figurada para um significado real, o que no caso paulistano passou pelos preços de tarifas que têm a intenção de forçar o consumidor de água a reduzir o consumo do precioso líquido, numa poupança forçada dos recursos cada vez mais escassos.

No campo da poesia, cinco anos antes de “Amazônia”, Carlos Drummond de Andrade escreveu o poema "Lira Itabirana", cujos versos parecem uma autêntica profecia à Nostradamus dos eventos ocorridos na cidadezinha do interior mineiro neste mês de novembro, o que foi percebido e divulgado por internautas conhecedores da obra do poeta. Diz o poema drummondiano: “I - O Rio? É doce./A Vale? Amarga./Ai, antes fosse/Mais leve a carga.//II - Entre estatais/E multinacionais,/Quantos ais!/III - A dívida interna./A dívida externa/A dívida eterna.//IV - Quantas toneladas exportamos/De ferro?/Quantas lágrimas disfarçamos/Sem berro?".

O filósofo da ciência, Francis Bacon, cunhou uma infeliz metáfora ao pontificar sobre a relação que o homem deve ter com a natureza. Segundo o pensador britânico do século 16, um dos grandes nomes da filosofia da ciência na História, o homem deve subjugar a natureza, retirando-lhe à força os seus benefícios. Aquecimento global e tantas outras mazelas ambientais como a de Mariana mostram que esta visão do problema é um erro crasso. Afinal, conforme cantou Roberto Carlos em outra canção: "Quem briga com a natureza/Envenena a própria mesa/Contra a força de Deus não existe defesa".

(Gismair Martins Teixeira, doutor em Letras pela Universidade Federal de Goiás, professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte, Seduce-GO)

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