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OPINIÃO

O banho e nossos três lados

Imergir em duas águas e lavei minha saudade.

Emergir: tornei-me um anjo nos distantes espraiados

onde as coisas eram puras e gentis as criaturas.

Rio, meu rio Passagem:

passagem de mim criança para o mundo de além-margem.

Vou também para Pasárgada, mas juro que na lembrança

não tenho a mulher do rei: amo as tuas lavadeiras.

Que temos dois lados, é certo: o de fora, que é lavável e o de dentro, impermeável. Hegel, no seu processo dialético, diria logo que temos três lados: o interior, o exterior e o de permeio, que é a síntese dos dois. Esse terceiro lado – ou a terceira dimensão – é o que a gente perde e recupera por vezes num banho, num largo banho de rio. Esse terceiro lado, só o recuperamos no aberto espaço da natureza, onde o tempo parece infinito.

Na dimensão espaço-temporal, temos dois outros lados: o de ontem e o de hoje, o de onde estivemos e o de onde estamos. O lado de lá e o lado de cá, onde buscamos recuperar o real invisível. Proponho-me ficar inicialmente de um lado: o de lá, o distante, o de antes.

Enquanto fico do lado de lá, você vá se colocando do lado de cá, onde vaga sua imaginação. Quando eu estiver do lado de cá, junto à sua imaginação, você poderá ir passando para o lado de lá, dos seus sonhos e das suas lembranças localizadas. Aí a gente se encontra pelo meio: cada um do seu lado.

Assim vejo você e você me vê no rio de nossa infância. Nosso rio chamava-se Passagem, de propósito, seja porque era um rio feito para não ficar, mas para passar, como passou, ou talvez pelos dois lados que ele tinha: o lado das águas possíveis e o lado dos horizontes impossíveis.

Então, no nosso rio, os meninos-homens ficavam do lado de cá e as meninas-mulheres ficavam do lado de lá. Se você (digamos leitora), foi por sua vez menina-mulher, aconteceu-lhe a mesma coisa: do outro lado, os meninos-homens.

Do lado de baixo para cima, ou do lado de cima para baixo, o rio se abria em duas dimensões e a gente descobria a terceira dimensão, que era o dentro das águas. O rio carregava, para transmitir de uns a outros, a essência das pessoas. Uma essência cheirosa ao vento. Como se as flores do campo nascessem de dentro das águas. Ou como se as pessoas fossem flores cheirando no campo. O encontro das pessoas com as águas era a descoberta do próprio eu de cada um antes encoberto pelas suas indumentárias.

Havia casos daqueles que perdiam seu eu e ficavam coisificados na correnteza das águas. E havia casos dos que não entravam no rio junto com outros e por isso dispersavam seu eu ficando à margem. O eu se perde quando se separa dos outros. É o caso daqueles que cometiam o pecado de perseguir as meninas-mulheres das águas. Alguns deles eram castigados e levados para a cadeia pública para conhecimento de todas as crianças da cidade. Às vezes era o rio que expulsava alguém por não saber da sua essência só revelada no banho, ou que brincavam inescrupulosamente com as correntezas e morriam afogados.

O rio é o equilíbrio e as águas, a limpeza da alma. O lado de fora deve lavar o lado de dentro. Quando sobem as águas do rio, devem subir também ao coração. O coração deve pressentir quando as águas sobem e não expor-se à volúpia das águas. O rio é como a gente: precisa ser sondado, mesmo sendo insondável. O rio passa como a gente, mesmo ficando no mesmo lugar. Quem disse isso foi mesmo Heráclito? Panta rei: tudo corre, tudo passa como o rio e nunca nos banhamos nas mesmas águas.

A gente vai banhar-se no rio e o rio quer visitar a gente: entra pela alma, corre pelo dentro, derrama seus murmúrios em nossos ouvidos e vai embora, levando nossas fantasias liquefeitas. No rio banham-se as sereias, como as pessoas. Elas vêm ao encontro da terra como as pessoas vão ao encontro das águas. No rio se encontram pessoas e sereias. As sereias nascem da mente e as fantasias nascem do rio.

Do rio nasce o tempo que fica infinito no seu correr. O correr do rio é o estar no tempo do infinito. As pessoas nas águas ficam infinitas no tempo. O infinito escorrido das águas fica nas pessoas. Quem se banha no rio renasce, fica com alma de sereia.

Então a sereia nos abraça e leva nosso corpo pelas águas e deixa sua alma em nosso corpo que abraça as águas sereialmando.

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa - E-mail: [email protected])

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