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OPINIÃO

Afinal, quem deu asas à lagarta?

Afinal, quem deu asas à lagarta? Pergunto-me, atônito, diante de tão surpreendente metáfora da vida. Como conceber que aquele ser viscoso, rastejante, quase vil, possa se mudar em tão bela criatura, feita para os ares e para o beijo das flores? Quem lhe deu as suas asas? Quem, por um presente, lhe elevou às alturas?

– Certamente, não fora o homem. O homem jamais voou, exceto por artifícios outros. E caso pudesse conceder esse mérito a alguém, o faria a si mesmo e não à lagarta. Ser desprezível! “Que desperdício oferecer-lhe asas”, pensaria o homem, em seu egoísmo.

– Quem sabe a divindade tal regalo lhe tenha feito. Voar é próprio dos anjos e das criaturas celestes! Nisso as aves a eles se assemelham, senão pelas penas, ao menos pela proximidade com o azul. Ora o azul do céu, ora o azul das águas, dos oceanos e dos rios. A ninguém espanta que as aves voem. Voar lhes é próprio. Mas, quanto à lagarta, quem lhe deu as asas?

– Talvez as suas asas não lhe tenham sido dadas. Talvez de algum modo, desde sempre, à lagarta tenham pertencido. Mas, por que somente agora? E, por que, não desde o ovo?

– Rastejar-se sobre o solo, inferior aos outros seres. E, como se isso não bastasse, não fosse preço suficientemente razoável, submissão satisfatória, ainda ter que se alimentar de cocô. Um ser constantemente refém de todos os outros. Desprovido de defesas que lhe assegurem a própria vida. Por que não, desde o início, o céu ser o seu lar? Ao contrário dos pássaros, que, logo infantes, projetam-se no azul, suas asas lhe foram dadas. Não nasceram consigo.

– Mas, afinal, quem deu asas à lagarta?

– Afastar-se dos demais e recolher-se no casulo, eis a fórmula da conquista de suas asas. Ninguém outro poderia conceder-lhe tamanho dom, apenas esta dupla: o silêncio e o tempo. Silenciar-se para o mundo e recolher-se para dentro. Voltar-se para sua própria casa, construindo-a. Dar tempo para que o silêncio inicie a transformação. O recolhimento é o preço da mudança e o seu prêmio é a conquista de si. Do chão às alturas, por suas asas. Não mais lagarta, mas borboleta.

(José Reinaldo F. Martins Filho, mestre em Filosofia (2014) e mestrando em Música, ambos pela UFG. doutorando em Ciências da Religião pela Puc-Goiás)

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