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OPINIÃO

Desburocratização, uma tapeação que vem de tempos imemoriais

Um dos assuntos mais em voga que existem é a desburocratização. A famigerada papelama sempre assumiu proporções de epidemia, reclamando uma providência de cima. E tão gritante era a necessidade de se abolir o papelório desnecessário e complicativo, que foi preciso criar um cargo, com “status” de Ministro de Estado, para, de bisturi em punho, realizar monstruosa e delicada cirurgia. Acabou foi o ministro renunciando, sob o pretexto qualquer, e cá comigo acho ele fez foi assombrar com tanta burocracia.

A fila do INSS, os carimbos, as assinaturas, os protocolos, os atestados mais esquisitos, tudo isto era recebido com justificada antipatia pelo povo: e, em conseqüência, tudo que visa a erradicar algo incômodo ou eliminar trabalho é muito bem acolhido pelo povo... para desespero dos despachantes.

A figura do simpático Hélio Beltrão, tal qualmente Dom Quixote a caminho da Baratária, lutando contra moinhos de vento e cavalgando seu Rocinante em companhia do fiel escudeiro Sancho Pança, encontrou sérias dificuldades para arrancar da mente da própria natureza de nossas repartições públicas a mania de impor exigências enormes para solucionar casos mesquinhos.

Acabou foi o bravo Beltrão largando a rapadura e frouxando as cunhas, apesar de ter deixado no seu rastro uma esteira de boas realizações desburocratizantes.

Exemplos existem aos montes. Lá nas Minas Gerais, por exemplo, se se atrasava uma conta de telefone, por exemplo, o cristão tinha que peregrinar até a Telemig, onde uma displicente funcionária, muitas vezes sem ao menos olhar a cara da gente, apunha, mecanicamente, um carimbinho, para indicar que a empresa estava ciente de que o pagamento estava sendo feito com atraso. Parece que aquilo visava simplesmente impor um castigo ao assinante, “pra ele largar da moda”. Não seria mais fácil ter estabelecido, na própria conta, uma multazinha? O mesmo acontecia com os carnês do Plano de Expansão: quando se atrasava uma prestação, os bancos recebedores eram instruídos para não receber a mensalidade sem o antipático carimbinho da empresa, que – pasmem! – não continha data, assinatura, nada, a não ser o nome Telemig. Era a “autorização” apócrifa. Não sei se foi abolida esta absurda exigência: se não, ainda é tempo. Deve ter sido, pois a Telemig nem existe mais.

Já com as contas de água e luz, a mineirada descobriu a tempo a mancada, e passou a cobrar a multa por atraso, descomplicando as coisas, mesmo assim depois de muitos meses agindo à Telemig.

Numa época em que se procura racionalizar as coisas, só se pode atribuir exigências absurdas como estas a um desejo sádico de algum executivo, que, não tendo o que fazer para justificar seus altos salários, promove reuniões para discutir o sexo dos anjos e expelir resoluções para castigar o já castigado brasileiro. Ou, melhor definindo, vamos “no popular”: tem é aquilo na cabeça.

Francisco Campos, o Chico Ciência, ao assumir, nos tempos getulistas do Estado Novo, o Ministério da Justiça, disse ter encontrado sua mesa atulhada de processos pendentes de decisão ministerial, muitos dos quais com um carimbão “urgente” na capa. Após compulsar alguns, o grande jurista resolveu cometer o “crime” de mandar incinerá-los.

Anos depois, deixou o ministério, sem haver recebido uma única reclamação dos interessados em tais processos “urgentes”.

Existe até uma anedota (perfeitamente viável em termos de realidade) para exemplificar os trâmites do processo que costumo chamar de “processo au-au” (“ao chefe tal, para isto”, “ao diretor, para aquilo”...).

É um fato que teria acontecido durante o Estado Novo: um soldado cometeu uma falta qualquer, e o zeloso cabo deu parte para o sargento; este encaminhou ao subtenente; o sub, ao segundo tenente; este ao primeiro tenente; o primeiro-tenente, ao capitão; este, ao major; o major, ao tenente-coronel; este, ao coronel comandante do batalhão. O coronel-comandante, para não fugir à regra e ao ver que o processo disciplinar estava sendo empurrado para a frente, não quis decidir sozinho, presumindo, pela longa tramitação, tratar-se de algo sério. E, matreiramento, passou-o para frente.

Tempos depois, já bastante volumoso e ensebado, o processo estourou na mesa de Getúlio Vargas. Este leu a parte inicial e viu do que se tratava. Abriu o volume ao meio e viu o empurra-empurra pra decisão superior. Não teve dúvidas, e abriu na última folha, dando seu veredicto: “Arquive-se”.

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO,  membro-fundador da Academia Tocantinense  de Letras e da Academia Dianopolina de  Letras, escritor, jurista, historiador e advogado - [email protected])

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