Brasil

Minhas quartas-feiras com o dr. Joffre

Redação DM

Publicado em 16 de fevereiro de 2016 às 22:43 | Atualizado há 10 anos

Hoje cheguei no horário, estava ansioso para continuar nossas discussões a respeito dos temas que havíamos iniciado nas semanas pretéritas: A Enciclopédia de Diderot, O Iluminismo e hoje arremataríamos com a revolução francesa.

Dr. Joffre estava com ótimo humor, após nossas trocas mutuas de gentilezas (dei-lhe o pedaço de doce de leite e ele deu-me o tablete de chocolate), beijei-lhe a fronte e, nem bem comecei a falar, ele “cortou-me” e disse:

– Ontem, ao revirar minhas gavetas na biblioteca, deparei-me com algumas fotografias daquela nossa viagem a Europa em 1982, senti muita saudade da Alzira (sua esposa falecida) pois pareceu-me, pelas fotografias, que ela está tão presente, mas minhas atuais movimentações, deu-me, ao recordar daquelas nossas andanças, um certo “banzo”; assustei-me ao ver o José Paulo, seu filho, tão menino e hoje nosso colega de profissão! (naquela época José Paulo tinha 15 anos de idade).

Joffre gostava, de vez em quando, falar sobre a figura da pensadora e, sobretudo, romancista francesa, George Sand, e em uma das vezes que Marília e eu fomos a Paris, estivemos na casa (Palácio) onde ela viveu, na cidadezinha de  Nohant,  localizada não muito distante, de onde lhe trouxe um livro de autoria daquela escritora; faço estas pequenas divagações para dizer que George Sand, em um dos seus “pensamentos” que ficou para a posteridade, exprimiu o que o dr. Joffre quis dizer sobre a Alzira, sua companheira de longa jornada e que partiu para o oriente eterno, antes dele.

“A recordação é o perfume da alma. É a parte mais delicada e mais suave do coração, que se desprende para abraçar outro coração e segui-lo por toda parte.”

Passamos, então, a falar sobre aquela viagem, como ele demonstrou que desejava:

No começo do ano de 1982 dr. Joffre convidou-me a ir com ele ao Congresso Mundial de Gastroenterologia que seria realizado em Estocolmo (Suécia)  no mês de maio; Ficamos, Marília e eu, muito animados pois aproveitaríamos a viagem para participar, também, do Congresso Mundial de Coloproctologia que se realizaria em Munique (Alemanha) além do fato de ser aquela a primeira vez que iríamos a Escandinávia; alguns dias depois, dr. Joffre disse-me que o médico de Anápolis, dr. Roberto Zacarias e sua esposa, senhora Sissi, manifestaram interesse em acompanhar-nos e ele, zeloso como era, perguntou-me se aceitava os novos companheiros. Tudo resolvido!

Fizemos muitas reuniões, algumas delas em Anápolis, para discutir a programação. Lembrar que as reuniões eram apenas um artifício para jantarmos juntos e saborearmos os vinhos selecionados para aquelas oportunidades; ficou acordado que aproveitaríamos o fato de estarmos na Europa para visitar alguns países da Europa central (Alemanha, Áustria, Itália e França).

Marília, José Paulo e eu viajamos com alguns dias de antecedência (uma semana), pois tínhamos a intenção de que José Paulo conhecesse a cidade de Londres, especialmente os locais onde Marília e eu vivemos e circulamos (seis meses) nos idos anos de 1972 (fiz um curso de extensão no famoso Hospital São Marcos de Londres); no dia aprazado voamos para Estocolmo, onde encontramos nossos companheiros de viagem.

Tivemos um pequeno contratempo, todas as acomodações dos hoteis estavam ocupadas (mais de 10 mil congressistas), embora tenhamos feito as reservas com antecedência (na verdade não com muita antecedência!), fomos salvos pela gentileza dos suecos, a Comissão Organizadora do Congresso havia conseguido, como ultima instância, hospedar-nos na Casa do Estudante Universitário, desocupada pelo fato de ser época de férias escolares.

Ao chegarmos a Casa, ficamos embevecidos com o que vimos, constituindo, inclusive, em uma agradável surpresa, pois o ambiente era muito organizado, as acomodações (apartamentos) eram confortáveis e, sobretudo, muito bem cuidados, com direito, inclusive, a um bem servido café de manhã; como a sua localização era bastante afastada do local onde se desenrolava o Congresso, fomos surpreendidos com a iniciativa do governo da cidade, de franquear os transportes coletivos (ônibus e metro) para os congressistas (bastava exibir o “crachá”).

Lembro-me das discussões que tivemos com alguns estudantes que permaneceram na casa e que eram oriundos de vários países, principalmente da África, porém, todos já bem adaptados ao idioma sueco; dr. Joffre, como sempre, procurava entender o que eles falavam utilizando-se de um dicionário que adquirira logo que chegou a Suécia (aliás em todos os países que visitamos, a primeira coisa que dr. Joffre fazia era adquirir um dicionário); foram momentos que não esqueceremos!

Após o Congresso fomos para Copenhagen (dois dias), depois, de ônibus, fomos para a Alemanha (Hamburgo), fizemos a travessia do Mar do Norte em um enorme barco que cabia dezenas de veículos, inclusive nosso ônibus; de Hamburgo fomos para Munique, onde participei do Congresso Mundial de Coloproctologia e nos intervalos das sessões, visitamos inúmeras atrações turísticas, inclusive alguns Castelos; de lá fomos até a histórica cidade de Heidelberg (às margens do rio Reno), onde permanecemos por dois dias.

Ficamos entusiasmados com a beleza da cidade de Heidelberg, população ao redor de 70 mil habitantes e aproximadamente 30 mil estudantes (ali está localizada uma das mais antigas Universidades do mundo, mais de 1.000 anos), ambiente alegre e festivo, principalmente pela presença de uma multidão de jovens circulando pelas suas ruas; no restaurante onde fomos jantar, todo o serviço de atendimento (garçons) era feito pelos estudantes (depois ficamos sabendo que era a regra em toda a cidade); uma linda jovem alemã (cursava medicina) foi quem nos atendeu; após termos sido identificados como médicos, ela redobrou em gentilezas para nos servir. Na despedida perguntei-lhe se podíamos comprar (como souvenir) as taças (que traziam a logomarca do estabelecimento) em que nos serviram o vinho; diante da resposta negativa, perguntei-lhe, para espanto do dr. Joffre:

V Posso “roubar” duas delas?

Dr. Joffre já queria se despedir, antevendo alguma extravagância de minha parte e qual não foi nossa surpresa ao ouvi-la dizer, piscando um dos olhos:

– Se eu não ver!  Prometo que vou fechar os dois olhos, disse-nos quase que num sussurro, podem levar!

De vez em quando experimento um bom vinho e utilizo a minha taça aqui na Santa Tereza, sempre em homenagem à amizade que dedico ao nosso compadre dr. Joffre e a sua saudosa e sempre lembrada esposa Alzira.

Voltamos a Munique e de lá descemos de trem para a Itália, com visitas a Roma, Pompéia, Capri e Anacapri; não vou cansar os leitores descrevendo tudo o que vimos, porém, preciso dizer que a companhia do dr. Joffre, com seu eruditismo cultural, enriqueceu-nos a todos.

Despedimos da Europa em grande estilo, fomos ao nosso derradeiro porto, a cidade de Paris e ali permanecemos por três dias; no dia anterior à nossa despedida, quando circulávamos pela avenida Champs Elysées  escolhemos um dos “cafés” que espalham suas cadeiras pela calçada e pedimos um champanhe “nacional”.

Antes de despedirmos de Paris, lembrei-me de uma “passagem” do Livro “Paris é uma Festa – Ernest Hemingway, 1950” a qual tomo a liberdade de transcrever:

“Se você não se alimentava bem em Paris, tinha sempre uma fome danada, pois todas as padarias exibiam coisas maravilhosas em suas vitrinas e muitas pessoas comiam ao ar livre, em mesas na calçada, de modo que por toda a parte via comida ou sentia o seu cheiro.”

Brindamos com taças de champanhe o sucesso da nossa viagem e da nossa camaradagem!

 

(Hélio Moreira, membro da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)

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