Desta vez os militares estão cobertos de razão. A decisão da senhora Raquel Dodge de querer reabrir o caso dos matadores de Rubem Paiva é mais uma dessas temeridades de que o MP vem se tornando pródigo. Não tem fundamento jurídico. Certo, restou a indignação moral. Mas a dor moral, que é da vítima e sua família e justifica o rancor, o ressentimento e até o desejo de vingança, não pode ser assumida pelo Estado. Quando o critério moral se sobrepõe à expressa disposição da lei, o Direito abre falência e o arbítrio impera, mandando quem pode e obedecendo quem não tem vergonha na cara. São com argumentos de viés moralistas que se obteve a condenação de Dirceu, de Lula... São com argumentos que tais que se tenta destruir o PT e se destituiu Dilma Rousef.
Nenhuma simpatia pelos que mataram Rubem Paiva. Que eles prestem contas ao Eterno, ou sejam perseguidos pelas Eríneas que atormentaram Orestes. Que o fogo do remorso consumam suas almas malfasejas.
Agora, esses sujeitos foram anistiados. Contra isso, na se pode fazer, a não ser que um golpe disruptivo da ordem jurídica vigente mergulhe o país em uma gerra de todos contra todos.
A senhora Dodge diz que é preciso fazer uma “reflexão da lei da anistia”. Não sei o que isso quer dizer. É um estranho conceito, alheio à ciência do Direito. Deve ser mai uma dessas jaboticabas jurídicas que vicejam no jardim das falácias, coisas como “ato de ofício indeterminado”, “propriedade oculta”, antecipação de pena etc etc.
A anistia de l979 foi bilateral. Atingiu os que violaram as leis da ditadura, à esquerda e à direita. Sim, porque os repressores também violaram as leis então vigentes. Apesar do regime ser ditatorial, não havia lei permitindo assassinar oposicionistas e ocultar seus cadáveres. Mas eles, militares e policiais, matavam e ocultavam. Não havia lei permitindo tortura. Mas eles torturavam. Tão criminosos ou mais do que os criminosos que eles perseguiam.
Mas veio a anistia ampla, geral e irrestrita e zerou o jogo. Ainda que certa esquerda pirracenta não aceite o fato, já consumado, não há dúvida que a anistia foi para os dois lados.
Anistia é fator de extinção da punibilidade. Não afasta a responsabilidade civil, mas impede o Estado de aplicar pena a transgressor anistiado. A norma não comporta excepcionalidades. Ou vale para todo o universo em que incide ou é nada.
A lei penal extintiva de punibilidade, ao entrar em vigor, produz, imediatamente, efeitos jurídicos. Ainda que o Congresso fosse louco o bastante para revogar a lei da anistia, não poderia anular seus efeitos jurídicos. Uma vez extinta a punibilidade, não pode ela – dentro do nosso contexto constitucional – ser restaurada. A uma, porque a lei penal não retroage para prejudicar o réu; a duas, porque o direito de não ser punido passou a integrar o patrimônio jurídico do anistiado, tornou-se direito adquirido, o qual é tutelado constitucionalmente.
Supondo que a lei da Anistia fosse revogada e seus efeitos anulados. O que aconteceria? Os torturadores e os assassinos da ditadura militar iriam para a cadeia, certo, mas os presos políticos teriam que voltar para acabar se cumprir suas penas, e os cassados voltariam à condição de proscritos políticos. Ou seja: iria produzir uma situação absurda, politicamente indesejável e socialmente perturbadora.
Dona Raquel Dodge estaria querendo virar estátua de sal? O Supremo já decidiu sobre isso, já fez coisa julgada. Qual seu interesse em desenterrar o defunto? Não me cabe especular sobre suas motivações. Deixo isso para os teóricos da conspiração.
De um modo geral, os militares tem tido um comportamento político exemplar desde que a ditadura acabou. Não se metem mais nos assuntos políticos que não lhes dizem respeito. Certo, eventualmente aparece algum general fanfarrão, como este Mourão, querendo apavorar as criancinhas com suas ameaças pueris. Mas a contrabalançá-lo temos um general Villas Boas que é um oficial decente, sério e lúcido, que honra o legado de Caxias.
Com a anistia de 1979, acabou a guerra contra o “inimigo interno”, infame conceito gestado pelos ideólogos da Segurança Nacional. Não houve congraçamento, mas pelo menos acabaram-se as hostilidades. É quase um passo para a paz. Qual o sentido de reabrir feridas mal cicatrizadas e dar início a uma guerra em que todos saem perdendo?
Com tanta coisa mais séria com que se preocupar – como os indecorosos auxílio moradia de juízes e procuradores –, nossa PGR empenhada em desenterrar defunto das covas!
(Helvécio Cardoso, jornalista)