Dalton Trevisan terá três obras relançadas pela editora Record
Estadão Conteúdo
Publicado em 22 de abril de 2022 às 20:40 | Atualizado há 3 anos
O
Vampiro de Curitiba não mora mais em seu castelo. O escritor Dalton Trevisan
saiu da casa em que viveu décadas, na Rua Ubaldino do Amaral, e que ao longo
dos anos se tornou um ponto turístico não oficial da capital paranaense,
atraindo leitores em busca de uma aparição do recluso autor.
A
casa, localizada no alto de um bairro chamado justamente Alto da Glória, se
tornou incompatível com os 96 anos do autor – em 14 de junho ele faz
aniversário. Mas, segundo a reportagem apurou, a mudança para um apartamento na
Rua Doutor Muricy, no centro de Curitiba, ocorreu após um assaltante entrar na
residência do escritor – o homem foi preso em flagrante.
Isso
ocorreu no final de 2021. Mas, como tudo que envolve o autor, a mudança de
endereço se deu sem alarde. Nenhuma linha na imprensa curitibana. Quem soube,
foi “de ouvir falar”. “Alguém me disse que há algum tempo ele foi assaltado lá
na Ubaldino e que hoje ele mora num apartamento”, diz o escritor Cristóvão
Tezza que, durante anos, foi vizinho do Vampiro, mas que, por “acasos
curitibanos, nunca tive propriamente contato com ele”.
Há
décadas, são poucas as pessoas que têm acesso à vida íntima do autor. Algumas
morreram recentemente, como o jornalista Fábio Campana (vítima da covid-19) e o
livreiro Aramis Chain, cuja livraria era uma espécie de escritório informal de
Trevisan – ele recebia correspondências e telefonemas por lá.
Hoje,
são quatro ou cinco pessoas que convivem com o escritor, entre elas a
jornalista e ex-editora da Gazeta do Povo Marleth Silva, o cineasta Estevan
Silveira, o diretor teatral João Luiz Fiani e Constantino Viaro, proprietário
de um museu que abriga as obras do pai, o pintor Guido Viaro, que foi amigo de
Trevisan e colaborador da revista Joaquim, editada pelo escritor no final da
década de 1940. Há ainda uma jovem chamada Fabiana Vieira, amiga e espécie de “secretária”
informal do escritor, que mora no mesmo prédio para onde Trevisan se mudou.
É um
círculo restrito, mas fiel, que protege a privacidade do autor. A notícia sobre
esta reportagem chegou ao ouvido do escritor mais rapidamente do que a leitura
do menor de seus minicontos. “Dalton está tranquilo. A única preocupação das
pessoas em torno dele é com o endereço”, afirma Marleth Silva.
Apesar
do traumático assalto à sua antiga casa, o autor segue bem de saúde. Conhecido
por ser um andarilho contumaz de Curitiba, desde o início da pandemia
praticamente não saiu mais de casa. O que o obrigou a fazer fisioterapia por
conta de problemas de articulação. A alimentação, quase sem carne, é a mesma.
De
resto, segue se cuidando como fez a vida toda. Ele já tomou as três doses da
vacina. Agora, parece estar mais animado em sair de casa, com o arrefecimento da
pandemia. “Ele está ótimo de saúde. Creio que vai passar dos 100 anos – e assim
espero”, completa Marleth.
De
família abastada, Dalton Trevisan nunca precisou da literatura para sobreviver
– ainda que tenha vencido premiações polpudas, como o Camões de 2012, o mais
importante da língua portuguesa e que lhe rendeu 100 mil euros (quase R$ 600
mil em valores atualizados).
Ele
deu por encerrada sua carreira de escritor em 2014, com O Beijo na Nuca, uma
coletânea de contos em que atualizava os vícios de seus personagens, alguns
deles acometidos pelo crack.
Caderninhos
Trevisan,
segundo os amigos, costuma falar que, “depois dos 80 anos, ninguém escreve nada
decente”. No entanto, ele continua a reescrever seus contos. Isso o fez retomar
um costume antigo de reunir algumas histórias em caderninhos feitos de forma
artesanal, parecidos com os cordéis nordestinos. A reportagem teve acesso a
alguns deles.
“É uma
forma de fazer os contos circularem”, conta Marleth. “O Dalton gosta da
experiência de presentear com os caderninhos, de vê-los se esgotarem. Tudo
muito informal. Como ele tem uma obra muito extensa, agora relê e redescobre.”
Segundo a jornalista, o escritor prepara para breve uma nova publicação nesse
formato.
Além
da possibilidade de voltar a circular pela Curitiba que tanto retratou, a
reedição de alguns de seus livros que estavam há anos fora de catálogo tem
animado Trevisan. Segundo a Record, editora do escritor, serão reeditadas e
terão versão em e-book as coletâneas “Em Busca de Curitiba Perdida”, “33 Contos
Escolhidos” e “Contos Eróticos”.
Ao
longo de sua trajetória, Dalton Trevisan manteve o controle total sobre sua
obra. Ele escolhia as ilustrações para as capas – a esmagadora maioria assinada
pelo amigo Poty Lazzarotto – e não deixava que uma vírgula sequer fosse trocada
de lugar na edição final. Mas e quando ele morrer, quem cuidará de sua obra, já
que só lhe restam uma filha, com quem é rompido, e uma neta? “Não sei se
ele já deixou isso programado. Não sei mesmo. Espero que tenha pensado nisso ou
que pense”, observa Marleth.
No
entanto, Trevisan já doou para o Instituto Moreira Salles (IMS) cartas que
trocou com Otto Lara Resende. São cerca de 600 correspondências. Um verdadeiro
tesouro em se tratando de um autor que se recusou a falar qualquer coisa fora
de seus livros. Os dois autores se conheceram por volta de 1955, na casa de
Fernando Sabino, no Rio, quatro anos antes da estreia oficial de Trevisan na
literatura com Novelas Nada Exemplares, de 1959.
Entre
as diversas histórias que pairam a respeito de Dalton Trevisan, uma delas diz
que o autor, exatamente como um vampiro, alimentava sua literatura com
histórias contadas por gente que vivia no submundo curitibano. Eram outros que
contavam a ele as histórias de assassinatos, brigas de casal e violência sexual
que povoaram sua obra.
No
cinema
Uma
dessas figuras seria o cineasta Estevan Silveira. Dono de uma lotérica no
centro de Curitiba, ele foi um dos poucos realizadores que levaram obras de
Dalton Trevisan para o cinema – outro foi Joaquim Pedro de Andrade, que filmou
Guerra Conjugal em 1975. Entre outros contos, Estevan filmou a ode Em Busca de
Curitiba Perdida e o underground Lulu a Louca. Todos mantendo de forma literal
o texto do escritor.
“Conheci
o Dalton quando fui ver uma adaptação teatral de um de seus textos. Aí viramos
amigos”, lembra Estevan. “É mito”, afirma com um riso irônico no
rosto, ao ser questionado se era um “informante” de Trevisan na noite
curitibana.
“Mas
o próprio Dalton responde isso nos contos dele. É só ler Retrato 3 x 4”,
ressalta sobre o texto que é uma espécie de anedotário com máximas a respeito
da própria mitologia que cerca o autor. Nele, Trevisan escreve coisas como
“o que não te contam, ouça atrás da porta”.
Se há
um mistério sobre a origem das histórias de Trevisan, é mais que sabido que os
amigos sempre foram “protótipos” para contos. Em uma época em que
ainda não mantinha hábitos vampirescos, Trevisan circulava em rodas de
escritores e cineastas de Curitiba. E retratou alguns amigos em contos.
O
jornalista Carlos Alberto Pessoa era tão talentoso que virou o protagonista de
O Pássaro de Cinco Asas, de 1979, um fã de Fellini e Bergman que, adulto, ainda
vivia com a mãe. O escritor Jamil Snege, no mesmo livro, teria sido a
inspiração para Eu, Bicha. E Fábio Campana estava em O Gatinho Perneta. Mas,
claro, os inimigos também tiveram seu lugar na obra do autor. Hiena Papuda, já
nos anos 2000, foi dedicado ao desafeto Miguel Sanches Neto.