Cultura

Sem-tetos como estrelas

Diário da Manhã

Publicado em 9 de junho de 2021 às 18:16 | Atualizado há 4 anos

O filme “Noites de Circo” (1953) esteve em cartaz no cinema paulistano de rua Marrocos, mas no documentário “Cine Marrocos”, dirigido por Ricardo Calil, a finalidade da obra é outra: o clássico longa-metragem de Ingmar Bergman foi reencenado por moradores sem-teto, num lampejo criativo que encontra paralelo em “Jogo de Cena”, do mestre do brasileiro Eduardo Coutinho. Não poderia ser melhor.

A história do Cine Marrocos, localizado no centro de São Paulo, é de fato gloriosa: em 1954, chegou a ser considerado o mais luxuoso da América Latina, ao nascer com esse slogan por representar o auge do cinema de rua e do próprio centro da capital paulista.

Foi responsável ainda por sediar o primeiro festival internacional do Brasil, que contou com a participação de astros de Hollywood e mestres celebrados do cinema. No evento, clássicos como “A Grande Ilusão”, de Jean Renoir, “Júlio César”, de Joseph L. Mankiewicz, e “Pão, Amor e Fantasia”, de Luigi Comencini, foram exibidos.

Em 2015, quando a equipe de “Cine Marrocos” pisou pela primeira vez no tradicional cinema de rua, o espaço já havia disponibilizado suas telas para a exibição de filmes pornográficos (anos 1970), fechado suas portas (década de 1990) e se tornado há pouco uma ocupação de 2 mil sem-tetos de 17 países. Os desabrigados dormiam em quartos provisórios nos corredores do Marrocos e do prédio, além de conviverem com ameaças de verem suas casas perdidas pela reintegração de posse da prefeitura paulistana.

“Tem dois gestos políticos. Primeiro, exibir filmes para os moradores da ocupação. O Marrocos não poderia ficar fechado. O outro aspecto político é convidar as pessoas para ver esses clássicos que foram exibidos no festival internacional do Brasil e mostrar todo um potencial que está escondido, do vamos dar a melhor vitrine – a tela do cinema – mais os filmes antes destinados para a elite”, explica ao Diário da Manhã o cineasta Ricardo Calil, codiretor também do documentário “Narciso em Férias”.

A grande beleza foi Calil ter transformado pessoas invisíveis pela sociedade em estrelas, com algumas demonstrando surpreendente vocação às artes cênicas. Na oficina, reencenam cenas famosas dos clássicos e acrescentaram sobre os personagens suas memórias, vivências, marcas e talentos, reinventando papéis eternizados por Gina Lollobrigida, Vittorio de Sica, Gloria Swanson, Harriett Andersson e por aí vai.

Em um dos momentos mais marcantes, o cantor camaronês Yamaia Mohamed adaptou o monólogo shakespeariano de Marco Antônio em “Júlio César, papel originalmente interpretado pelo ator Marlon Brando no filme de mesmo nome, num rap.

Noutro, o jornalista congolês Junior Panda, perseguido pela ditadura de seu país, encenou em sua língua natal (Lingala, idioma falado no Congo) o personagem de Jean Gabin, em “A Grande Ilusão”. Ao passo que a brasileira Volusia Gama, ex-bailarina, virou Norma Desmond em “O Crepúsculo dos Deuses”. É de se emocionar.

Universos distintos
“Cine Marrocos”, vencedor da edição de 2019 do festival É Tudo Verdade, estreita os universos que até então soam ao espectador distintos entre si, como passado e presente, documentário e ficção, ostentação e precariedade. Sem contar, claro, que pincela na tela grande a luta por moradia. Está aos olhos do público o preconceito contra os sem-tetos e o fim dos cinemas de rua: Ricardo Calil faz uma declaração de amor à sétima arte, mas também questiona padrões sociais intrínsecos à discriminação.

“O cinema deve ser para todos – tanto para a elite que o f requentou o Cine Marrocos no festival de 1954, quanto para os moradores da ocupação. As filmagens foram uma maneira de reocupar o edifício não apenas fisicamente, mas também simbolicamente”, atesta o diretor. A captação de imagens, diz o Calil, foi realizada em pouco tempo, recursos escassos e a iminência de reintegração de posse. “A equipe trabalhava em cooperativa, em forma de guerrilha. E os moradores foram as estrelas”, atesta.

Tudo isso, é importante ressaltar, temperado com uma montagem seca – assinada por Jordana Berg, que trabalhara com Eduardo Coutinho – que deixa evidente as semelhanças com o mestre do documentário brasileiro. E permite um diálogo fílmico com aquela que talvez seja uma das produções mais marcantes do cinema brasileiro da última década, o longa-metragem “Era Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé.

Ainda sem previsão de quando vai chegar ao streaming, “Cine Marrocos” está em cartaz em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Florianópolis, Campinas e Salvador. Uma pena. Porque o filme é, antes de mais nada, uma carta de amor ao cinema e toda a possibilidade de sonho que ele permite àqueles que são sufocados por uma existência que lhes amordaçam. (Marcus Vinícius Beck)

Filme assistido em cabine de imprensa virtual.

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