Os mortos-vivos da pós-modernidade
Redação DM
Publicado em 28 de agosto de 2018 às 22:19 | Atualizado há 7 anos
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) até o ano de 2020 a depressão ocupará o segundo lugar entre as causas de doença e incapacidade no mundo, ficando atrás apenas das doenças cardiovasculares. Um dos sintomas da depressão é a falta de autoconfiança, sentimentos negativos para consigo mesmo e a sensação de fracasso. Há, ainda, quem sustente que o “mal do século” XXI não é a depressão, mas a solidão.
As pessoas estão cada vez mais se tornando insociáveis e, consequentemente, individualistas. Disso decorre um paradoxal dilema: se, por um lado, as pessoas estão cada vez mais deprimidas e solitárias, por outro elas estão se tornando cada vez mais misantrópicas e, ao invés da interação intersubjetivas imergem no isolamento. Ou, de acordo com o cantor Renato Russo, o mal do século é a solidão, cada um de nós nos imergindo em sua própria arrogância, esperando um pouco de atenção. Essa atenção, nos dias atuais, dificilmente virá, pois, uma característica da vida moderna é a superficialidade das “amizades” virtuais e a efemeridade e fragilidade dos relacionamentos afetivos.
Esse isolamento, consequentemente, faz brotar o desejo de encontrar alguma maneira de interação social, desde que não seja duradouro, que não permita muito contato pessoal e, caso ocorra, que seja de uma forma que não seja possível o estabelecimento de nenhum vínculo. Por essa razão, surgem mais e mais pessoas que se beneficiam dessa realidade social, atuando ora como intermediário de relações sociais superficiais, ora como intermediando até mesmo a espiritualidade.
É incrível como a sensação de impotência e insignificância impõe que a pessoa não acredite nem mesmo que seja capaz de dirigir-se à Divindade, através de orações e, por isso, delega a outrem que o faça, pagando por isso, claro. Uma vida sem sentido, marcada pela escassez do diálogo e da troca de experiências, propicia o surgimento de exploradores que se apresentam como portadores de tudo aquilo que a pessoa quer ouvir mas recusa-se a compartilhar de seus medos e de outros sentimentos.
Há uma mercantilização de mentiras através das quais é possível comprar-se tudo o que desejamos ouvir, mesmo que seja uma ilusão. Como as pessoas estão cada vez mais demonstrando incapacidade de gerirem a própria vida, parece que está havendo uma espécie de “terceirização” de todos os atos da vida, até mesmo aqueles básicos, inerentes à própria condição humana, como comer, rezar e fazer sexo.
Existe um terrorismo sobre os nossos hábitos alimentares, onde tudo aquilo que gostamos de comer dizem que faz mal à saúde. Tudo isso é motivado por interesses comerciais da indústria alimentícia, onde trava-se uma disputa entre concorrentes e o consumidor fica no meio dessa guerra de marketing, indefeso e indeciso sobre o que pode e o que não pode comer. Há, ainda, os ditos profissionais que se dizem preocupados com a nossa saúde e a nossa decisão sobre o que podemos ou não comer fica condicionada a uma consulta a partir da qual será elaborada uma lista por esse guardião e vigilante dos nossos hábitos alimentares.
No plano espiritual renunciamos à nossa capacidade de interação pessoal com a Divindade e, como solitários deprimidos, incapazes, portanto, de executarmos, por nós mesmos, tarefas básicas de nosso cotidiano, delegamos a um terceiro as preces e os pedidos de acordo com nossas crenças. A incapacidade humana tem alcançado índices tão absurdos, agravada pelos sentimentos de baixa autoestima e o de confiança no potencial individual, que as pessoas preferem pagar para que um intermediador se ocupe das orações que elas precisam.
Nunca, em toda a história da humanidade, surgiram tantos segmentos religiosos e mercadores da fé lucraram tanto. Nunca a humanidade viu o ser humano tão desacreditado em seu potencial e imerso em um niilismo capaz de reduzi-lo a mero espectador da vida. Esse pessimismo em relação a si mesmo tem possibilitado comportamentos tão bizarros quanto paradoxais.
As pessoas, ao mesmo tempo em que fogem da interação social, elegem terceiras pessoas que, mediante pagamento, vão administrar todos os atos de sua vida. Por isso surgem atividades que, até pouco tempo, eram impensáveis. Ninguém, há algum tempo, poderia imaginar que surgiria alguém que se autodenominasse especialista em sexo e que cobrasse de nós para nos dizer como devemos transar e até como nos masturbar. Até então só as prostitutas se incumbiam dessa tarefa. Hoje, esses “profissionais” lotam auditórios e ginásios proferindo palestras sobre como devemos transar e quais as melhores maneiras de como nos masturbar. Elas querem nos fazer crer que conhecem nossos corpos mais que nós mesmos. Com a declínio da psicologia, graças ao avanço da neurociência, o divã do analista, tal qual o velho e bom diálogo com os amigos, está sendo substituído por pessoas que juram estarem habilitadas a cuidarem de nossas vidas.
Desta forma, surgem atividades lucrativas como “coaching” – essas pessoas que juram que vão nos fazer encontrar o sucesso profissional e financeiro, mas que nunca conseguem para eles mesmos – missionários, bispos ou pastores, sexólogos, “especialistas em bullying”, “especialistas em violência doméstica”, etc.
Recentemente, vi uma matéria falando de um curso de massagem erótica, promovido por um casal que se autodenomina “especialista em sexo tântrico”. Esse casal cobra caríssimo por algumas horas de sessão onde pessoas estranhas, que nunca se viram antes, iniciam toques e massagens nas genitálias até atingirem o orgasmo. Um ritual de masturbação coordenado por pessoas que acreditam ter a última palavra sobre uma prática que a própria natureza nos concedeu, gratuitamente, e sem a necessidade de intermediários.
Em verdade, o que se verifica é um empenho cada vez mais audaz no sentido de intromissão na vida privada e íntima das pessoas, uma forma de controle e vigilância constantes em todas as esferas humanas.
Ao que parece, a humanidade tem-se convertido em um amontoado de zumbis, que marcham perdidos em seus dilemas. O avanço tecnológico não foi capaz de vir acompanhado de melhorias na qualidade das relações interpessoais. Mesmo com os aplicativos destinados às comunicações, as conexões são superficiais e, ao contrário de aproximarem as pessoas, afastam-nas, fazendo delas seres cada vez mais virtuais. As pessoas agem dentro de uma linha limitadora de comportamento, sem nenhuma possibilidade de escapar dos padrões estabelecidos por grupos de espertalhões interessados em manter o controle comportamental, vigiando e orientando a multidão de acordo com as suas conveniências.
Os padrões socais são criados exatamente para estimular o egoísmo, o individualismo e, consequentemente, a produção de seres humanos depressivos, solitários, avessos à conexão intersubjetiva. Tornam-se, portanto, presas fáceis para aqueles que se beneficiam, lucrando alto com a debilidade do indivíduo, cada vez mais sem fé em si mesmo, forçando-o a terceirizar ou delegar a outrem todos os atos de sua vida. Não é por acaso que, atualmente, quem ousar pensar e agir por si mesmo tornar-se-á em um proscrito e, de consequência, sofrerá o anátema social e moral como castigo por ousar ser livre.
O mundo está se convertendo em uma estupidez generalizada, onde os elementos essenciais do ser humano, com a sua extraordinária capacidade inventiva, criadora e dinâmica, estão sendo retirado e transformando-o em um objeto autômato e coisificado.
Enquanto o ser humano se fecha para o salutar convívio social, trancado em seu individualismo e solidão, abrem-se, por outro lado, as portas para os oportunistas que encontram um terreno favorável ao exercício do controle social e individual.
Esses oportunistas, evidentemente, ditarão as normas de convivência, através do senso comum, sobre como cada um deve conduzir seus comportamentos, sentimentos e até mesmo o pensamento, que deixa de ser a expressão da livre análise, observação e exercício do intelecto, para converter-se em mera reprodução daquilo que é conveniente aos dominadores.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – mlbezerraro[email protected])