Psiquiatria das condutas morais
Redação DM
Publicado em 26 de agosto de 2018 às 02:29 | Atualizado há 5 meses
- A partir de um ensaio sobre o tema, o médico psiquiatra Marcelo Caixeta revela como o meio social, linguagem e sobretudo as bases biológicas dialogam para tornar o ser humano mais moral. Estudo tem o poder de revelar muito sobre nós mesmos
- Pouco estudado sob o ponto de vista moral, o “instinto laboral” ou “instinto do fazer” pode revelar muito de nossa personalidade. Observar o prazer de ver a felicidade das outras pessoas que usufruem de nosso trabalho pode ser revelador. Pesquisador e médico apresenta as bases etológicas-psicobiológicas da moralidade
Em seu Fundamentos da Etologia (Ed. Unesp), Konrad Lorenz, prêmio Nobel de Medicina, página 76, diz: […] “as influências do cativeiro podem levar apenas ao desaparecimento de determinados padrões comportamentos animais, mas nunca fazer aparecer um comportamento complexo”.
A Etologia volta-se basicamente para o estudo do comportamento animal na natureza, livre do cativeiro, mas pode também aplicar-se ao comportamento humano (Etologia Humana). Podemos parafrasear K.Lorenz do seguinte modo: “as influências sociais podem ter papel preponderante no desaparecimento de determinados padrões comportamentais humanos instintivos”.
Isso, em síntese, é a Moral, ou seja, o “desaparecimento” de determinadas condutas instintivas que possam levar a prejuízos no meio social. Aqui vale aquele ditado milenar: “conhece-se mais o homem por aquilo que ele deixa de fazer do que por aquilo que ele faz”.
O freio moral é mais importante do que “as realizações”. Em psiquiatria é muito comum o relato de parentes e amigos de psicopatas: “eles são maus, mas paradoxalmente bons, eles tiram a comida da boca ou a roupa do próprio corpo para darem para os outros”. Ou seja, eles até “fazem caridade”, dando a impressão de que são “morais” ou “altruístas”.
No entanto, quando se lhes pede que “não façam alguma coisa”, que “não prejudiquem os outros”, que “não deem vazão aos seus instintos em prejuízo de outrem”, aí então vemos que eles, de fato, no fundo, são mesmo muito amorais. O mesmo raciocínio se aplica a pessoas hipertímicas, a políticos, a demagogos, gurus, líderes, sacerdotes (protagonistas de religiões organizadas), etc: podem ser excelentes para “fazer coisas pelos outros”, mas são verdadeiros psicopatas quando é para deter os próprios impulsos prejudiciais a outrem.
Como se vê, a partir da citação de K. Lorenz, o homem se diferencia muito do animal. Se, no animal, o meio não é capaz de “criar novos comportamentos complexos”, no homem isso é perfeitamente possível. Aliás, é isso que promove a “evolução moral do homem”. A base desta evolução é justamente as modificações comportamentais que a sociedade–o meio social–exige do homem.
O meio social, inclusive, no homem, é aquilo que está na base de sua linguagem, como mostrou Vygotsky (vide, p.ex., A construção da Linguagem e do Pensamento na Criança, Ed. Martins Fontes). A linguagem interna é uma introjeção da linguagem exterior, do mesmo modo que a “voz de nossa consciência” tem muito da “voz das consciências externas”, as consciências que nos circundam. O pensamento, grosso modo, é a “voz do outro que acompanha nossas próprias ações dentro de nós”. Este pensamento pode ter também uma função “moral”: comentar–como se fosse um outro dentro de nós–nossas condutas morais. Este “outro dentro de nós” tem o poder não apenas de “julgar em voz alta para a nossa consciência aqueles atos morais que fazemos”, mas também de trazer para dentro de nós uma “moral externa”.
Ou seja, esta consciência moral que trazemos dos outros não é apenas uma “consciência utilitária”, um “hábito”, uma “coisa emplacada”, um comportamento behaviorista. É também um criador de novas estruturas, um criador de uma genuína moral. Não lida apenas com uma moral utilitária que aprendemos deste “outro”, pois também é capaz de produzir dentro de nós uma verdadeira modificação moral, que acontece quando recebemos do outro (via verbal ou exemplificante), e aceitamos deste outro, determinadas condutas. A via exemplificante é bem mais eficaz do que a via moral, pois, pela via exemplificante, este outro mostra sua dedicação, sacrifício, renúncia, para conosco.
O “freio” é um marcador moral bem mais efetivo do que a ação, mesmo caritativa. Evidentemente que uma ação caritativa, renitentemente repetida, via volitiva e racional (“sei que tenho de fazer algo de bom e vou me esforçar por fazê-lo”), acaba por “moldar o caráter”, refreando-o naquilo que ele pode ter de pernicioso. O “treino” na caridade ao próximo, pode acabar por criar uma “segunda natureza”, uma natureza que se refreia diante dos próprios impulsos. Mas o “querer fazer a caridade”, por sua vez, já implica uma certa renúncia a determinados impulsos, fazendo-nos cair na afirmação inicial: o “freio” é mais importante do que a ação, do ponto de vista moral.
Vemos assim que o altruísmo, ajuda mútua, trabalho frenético, atividade constante, são, todas, características biológicas que podem não ter nada a ver com a Moral. Daí o ditado: “de boas-intenções o inferno está cheio”. Ou então: “no inferno há muito trabalho”.
Como vimos acima, a Etologia tem relações com a Moral de vários modos. Por exemplo, “instinto gregário” (vontade de estar em meio aos outros), “instinto altruísta” (vontade de ajudar, sentir-se bem com esta ajuda ao outro), “instinto empático” (sentir o sofrimento que os outros sentem), “instinto laboral” (realização de atividades sobre o mundo, e estas atividades, por sua vez, geralmente são de uso coletivo). Um dos modos eficazes do instinto atuar sobre a moral é aquele do “altruísmo animal” (ver importante discussão sobre isto no livro de Wright–O Animal Moral, Ed. Campus). É o “desejo natural” que temos de ajudar o outro, desejo de servi-lo na dificuldade, retirá-lo do sofrimento. Nossos “neurônios-espelho” emocionais são células límbicas capacitadas para reagir ao sofrimento-emoção dos outros. Esta reação gera desconforto, aí ajudamos o outro para fugirmos do desconforto. Do mesmo modo, quando vemos que o outro está bem, quando o outro nos agradece, estes “neurônios-espelho” reagem igualmente em sintonia, e nos sentimos bem. Isso reforça o comportamento altruísta, que fica sendo visto como algo “moral”.
Tudo isto, até agora, é bem estudado. Há, no entanto, um componente biológico-patológico de nossa mente que é pouco estudado do ponto de vista moral. São os reflexos morais longínquos do “instinto laboral”, “instinto do fazer”, assim como do “instinto do fazer-bem-feito”. Temos dois sistemas neurológicos que servem de base para estas instâncias, um localizado no sistema extrapiramidal-gânglios basais (que é o que “faz e checa para ver se fez bem feito”) e outro realizado no prosencéfalo basal-sistema de recompensas dopaminérgico (“prazer de ter feito alguma coisa”). Tais sistemas neuropsicobiológicos produzem o “prazer do fazer” e o “prazer do fazer bem-feito”. A estes instintos vêm acoplar-se outros, por exemplo, o prazer de ver a felicidade das outras pessoas que usufruem desse trabalho (você faz um trabalho e esse trabalho serve para alguém), e desse “trabalho-bem-feito” (a pessoa fica grata por você ter feito um trabalho tão bom para ela).
O “espírito de ordem” daí decorrente acaba redundando em “mais ordem”, “mais controle”, num círculo virtuoso de controle, reconhecimento, bem-estar, planejamento adequado do futuro (quem trabalha e planeja o futuro tem menos chance de ser vítima de contingências ansiogênicas).
A estas funções acresce-se aquela do poder “ansiolítico” do “dever cumprido”, da “consciência tranquila”, que é praticamente presente em todos seres humanos normais, em todas culturas. Esta “consciência tranquila”, na mente de alguns, é o mesmo sentimento que o filósofo português-holandês Espinosa denominava de “amor intelectual de Deus”. É um tipo de “integração calma e calmante com o Divino”. Também é um sentimento que tem bases neurobiológicas bem ancoradas (p.ex., ver sobre isso, R. Joseph–Neuropsychiatry, Neuropsychology, Behavioral Neurology. Ed. Wilkins).
Em muitos casos, patologias psiquiátricas onde há muita ansiedade, muita obsessividade, deperssão, podem levar o paciente a ter um “aumento de consciência moral”, um aumento da necessidade de entender e aplicar “o sentido da Vida”. É como se a Natureza, ou um Deus abscôndito, estivesse se utilizando da “doença” para produzir seres mais morais que outros, ou seja, mais concernidos com o “fazer-bem-feito”, o “seguir-as-Leis-de-Deus”, o “não conspurcar a fluidez natural do Universo”, do que os outros.
O freio moral é mais importante do que “as realizações”. Em psiquiatria é muito comum o relato de parentes e amigos de psicopatas: “eles são maus, mas paradoxalmente bons, eles tiram a comida da boca ou a roupa do próprio corpo para darem para os outros”. Ou seja, eles até “fazem caridade”, dando a impressão de que são “morais” ou altruístas”
Cognição, afeto, patologia, moralidade
O que é dramático para estes “grandes espíritos que passaram a viver em pecado” é que, na medida em que seu espírito vai galgando em profundidade, grande parte deles também é vítima do próprio psiquismo hiper-excitado, hiper-sexualizado, hiper-dominador, hiper-realizador, hiper-controlador”
Espinosa (“A Ética”) já dizia que só um afeto para contrapor-se com eficiência a outro afeto. Em termos práticos: o instinto sexual desenfreado, de um homem (o que Espinosa, tecnicamente, denominaria de “afeto”) só poderia ser contraposto por um outro afeto, de igual intensidade e contrário (por exemplo, o amor da esposa, o amor dos filhos, o amor pela reputação, a reputação social, religiosa, familiar, etc).
No entanto, há vários fatores “morais” na vida do homem que são propriamente “cognitivos”, não afetivos. Por exemplo, o “gosto por fazer bem-feito”, o gosto obsessivo pelo trabalho, pela realização científica, laboral-profissional, o “sentimento interno de estar-fazendo-a-coisa-certa” (em certa medida este último poderia ter sido denominado por Espinosa como “o amor intelectual a Deus”). Muitas pessoas com este “sentimento-de-estar-fazendo-o-bem-feito”, de “estar agindo de acordo com sua consciência”, de estar gostando de “participar do fluxo de ação do Universo”, não podem ser consideradas, psiquiatricamente, “doentes”. Elas não tem nenhum traço patológico que as faça ser enquadradas como tal, p.ex., não sofrem por isso, não deixam de ser funcionais, não deixam de trabalhar, amar, serem “felizes”. Não têm outras obsessões, compulsões, rituais, impeditivos, como costuma-se ver na doença obsessiva.
Quando se pergunta para estas pessoas, qual o sentimento que elas têm, uma das coisas que gostam de descrever é que, quando fazem o bem, “Deus lhes manda sempre o frio conforme o cobertor”, ou seja, eles têm a sensação de que toda provação que Deus lhes dá está ao alcance de suasforças.“Jáquandonóssaímosdo trilho, Deus nos deixa por nossa conta, e daí as provações que recebemos podem estar acima de nossas forças, pelo menos é assim que nós o sentimos”. “Quando fazemos o que está na “linha-de-Deus”, oudeacordocomas Leis do Universo, sentimos que nossa vida flui com tranquilidade, sentimos e vemos Deus agir em nossas vidas”.
É bem evidente que, se uma pessoa porta-se bem, diante do próximo, é possível que ela receba deste mais benesses do que aquele que se porta mal. No entanto, essas pessoas que “se-portam-bem” têm a nítida sensação de que Deus, de fato, está sempre agindo em seu favor, “a gente vê Deus removendo os obstáculos enormes e aparentemente intransponíveis à nossa frente; é como se Ele estivesse fazendo milagres a cada dia”… Estes sentimentos são muito ubíquos entre essas pessoas sadias, de modo que não podemos catalogá-los simplesmente como algo “patológico” ou supersticioso.
Não há muita dúvida de que pessoas com algumas doenças psiquiátricas se “aproximam mais de Deus”, p.ex., a pessoa com “depressão que pensa muito no sentido da vida”, ou a pessoa com obsessão, que está sempre “querendo fazer a coisa certa”. Para uns isso pode ser indício que as religiões assentam-se em fenômenos patológicos, no entanto, para outros, pode ser um exemplo de que Deus utiliza-se da Biologia (e consequentemente da Patologia) para fazer com que as pessoas melhorem, adquiram mais consciência e, assim, aproximem-se d´Ele.
A Biologia que torna um ser mais pensativo, preocupado, profundo, obsessivo, também pode torná-lo mais “hiperestésico” (pessoa que tem uma alta reatividade emocional, que reage muito a emoções, mais do que as pessoas normais), pode torná-lo mais tímido, mais vergonhoso. Sendo mais tímido, vergonhoso, etc, terá mais medo de errar, mais vergonha de ter seus erros apontados pelos outros ou por ele mesmo (muitos obsessivos não conseguem “fugir da Verdade”, tem de falar a Verdade o máximo que conseguem; outros querem exercer sua “atividade-de-espírito” sendo verdadeiros, aumentando assim a “persistência do próprio Ser”, como diza Espinosa). Há indivíduos que já nascem com uma “profundidade especial” da mente, querem perscrutar as profundezas do Universo, tanto em seu aspecto material quanto psicológico e espiritual. Tais indivíduos, muitas vezes, querem exercer “a potência do seu Espírito”, ou, como diz Espinosa, querem “perseverar continuamente no próprio Ser”. Tais indivíduos, muitas vezes considerados ou de fato “hiper-racionalistas”, têm um grande tropismo para a Verdade, em todos os campos. Um dos motivos cognitivos (não “afetivos”) que não os deixa pecar é a necessidade que eles têm de estabelecer tudo às claras. Muitos funcionam como “cirurgiões da Alma”, dão conselhos, ou conversam com os outros, sempre citando sua própria vida. E para isto, sendo tímidos, envergonhados, hiperestésicos, não irão querer, de modo algum ter de admitir que estão voluntariamente pecando.
Para eles, por exemplo, é inadmissível dizer para a esposa: “meu instinto sexual por você praticamente acabou, tive de arrumar uma amante novinha, sei que você nunca esperava isso de mim, nem meus filhos, meus netos, meu ambiente de trabalho, minha comunidade religiosa, social”. Para ele, o “objetivo do Universo” é que ele se sacrifique, renuncie ao prazer sexual, em prol da felicidade da esposa, dos filhos, trabalho, etc. Não conseguiria chegar numa outra pessoa simplesmente e dizer: “acho que meu prazer vale mais do que o seu, por isso sacrifiquei o seu bem-estar em prol do meu”.
Este “Ser Moral” jamais teria a capacidade de dizer isto assim, a céu aberto. Então, ou se esforça mais em sua obsessividade, ou então passa a esconder-se de tudo e todos. Neste ponto, deixa de ter a “força de Espírito” da qual Espinosa falava, ele tem de esconder-se e passar a usar as próprias forças contra si mesmo, ou seja, para calar-se, esconder-se, dissimular-se, armar artimanhas para “fugir da repreensão das pessoas”. Passa a anular-se de tal modo que começa a adoecer, deprimir-se, ficar ansioso. Acontece porque, como dissemos, é um espírito que está “atacando a si mesmo”. Seu próprio trabalho intelectual tem de ser reduzido ou superficializado, pois um aprofundamento intelectual implica em um aprofundamento moral, e ele quer justamente fugir deste aprofundamento moral. Podemos ver isto na vida de muitos “grandes gênios”, a partir do “momento em que viveram em pecado”. Por exemplo, segundo consta, Piaget, quando arrumou uma amante (B. Inhelder) e deixou os filhos e esposa à Deus-dará; ou então Einstein, que, também, além de deixar esposa e filhos, queria engraçar-se sexualmente com a própria enteada (a filha de sua companheira). Einstein, a priori, em determinado momento de sua vida, quis casar-se com a própria enteada, ou até viver em “menage à trois” com a mãe e filha (sua enteada). Só quando esta recusou é que ele então aceitou desposar a sua mãe.
Piaget foi tornando-se um “psicólogo cada vez menos psicólogo”, cada vez mais “matemático”, mais “lógico”, na medida em que não conseguia aprofundar-se na mente das crianças, apenas em suas ações operatórias, sensitivo-motoras (e não na parte propriamente psicológica, ou seja, linguagem, afeto, moral, relações sociais, etc). Vygotsky, e mesmo Wallon,–bem mais moral que ele–apesar de ter vivido bem menos, escrito menos, trabalhado menos, fez contribuições muito mais importantes para a “Psicologia Infantil” do que Piaget. Isso porque, sendo “moral”, Vygotsky ocupava-se com inteireza da psicologia da criança, não escamoteando-a como Piaget fazia, em diferentes setores, sensorial, motor, lógico, matemático, formal, social, etc.
O que é dramático para estes “grandes espíritos que passaram a viver em pecado” é que, na medida em que seu espírito vai galgando em profundidade, grande parte deles também é vítima do próprio psiquismo hiper-excitado, hiper-sexualizado, hiper-dominador, hiper-realizador, hiper-controlador. É chegada uma hora em que seu “psiquismo superior” tem de conseguir “desmontar a si mesmo”, renunciar, sacrificar-se pelo Outro, asfixiar os próprios Desejos em benefício dos desejos de outrem. Seu espírito super-dominador, super-ativo, torna-se vítima de si mesmo, pois sua energia é só pró-ativa, não consegue ser auto-controladora, auto-sacrificial, auto-renunciante.